CONCURSOS:

Edite o seu Livro! A corpos editora edita todos os géneros literários. Clique aqui.
Quer editar o seu livro de Poesia?  Clique aqui.
Procuram-se modelos para as nossas capas! Clique aqui.
Procuram-se atores e atrizes! Clique aqui.

 

Anistia para Bocage!

Paulo Monteiro
Estamos a menos de dois anos do bicentenário da morte do poeta Manoel Maria l’Hedous Barbosa du Bocage, falecido no dia 2 de dezembro de 1805. A manhã daquele dia era fria e chuvosa em Lisboa, contam os biógrafos, e o poeta faleceu devido a um aneurisma. Tinha pouco mais de 39 anos, pois nascera em Setúbal a 7 de setembro de 1776, filho de José Luiz Soares de Barbosa, que trocara o trabalho de juiz pelo de advogado, e de Mariana Joaquina Xavier Lestof du Bocage, filha de um marinheiro francês que desertara de sua armada passando a servir ao rei de Portugal.
Aos 10 anos o poeta perdeu a mãe, ficando órfão juntamente com seu irmão Gil, mais velho, o morgado da família, e as irmãs Maria Francisca e Maria Eugênia, morta muito moça e a quem o poeta dedicaria um dos seus mais sentidos sonetos:
De radiosas virtudes escoltada
Deste imaturo adeus ao mundo triste
Co’a mente no almo Pólo, aonde existe
Bem que sempre se goza e nunca enfada.

À fouce, a segar vidas destinada,
Mansíssima cordeira, o colo uniste;
O que é do Céu ao Céu restituíste,
Restituíste ao Nada o que é do Nada.

E inda gemo, inda choro, alma querida,
Teu fado amigo, tua dita imensa,
Que em vez de pranto a júbilo convida!

Ah! pio acordo minha mágoa vença;
É cativeiro para o justo a vida,
A morte para o justo é recompensa.
Órfão de mãe, foge de casa aos 16 anos, juntamente com o irmão, para ingressar na Marinha. E passa uma vida dividida entre as atividades de marinheiro, das quais acaba se afastando, e os improvisos, muitas vezes pornográficos, nos botequins de Lisboa, “Devoto incensador de mil deidades/ (Digo, de moças mil) num só momento,/ E somente no altar amando os frades,”, como ele mesmo se retrata num soneto famoso.
Retorna à Marinha. Parte para o Oriente, passando pelo Brasil. Deserta. É anistiado. Volta a Portugal, onde deixara uma noiva, a Gertrúria dos seus poemas. Na Ásia recebe a notícia de que ela estava noiva de outro. E desabafa:
Do Mandovi na margem reclinado,
Chorei debalde minha negra sina,
Qual o mísero vate de Corina
Nas tomitanas praias desterrado.

Mais duro fez ali meu duro fado
Da vil Calúnia a língua viperina;
Até que aos mares da longínqua China
Fui por bravos tufões arremessado.

Atassalou-me a serpe que devora
Tantos mil; perseguiu-me o grão gigante
Que no terrível promontório mora.

Por bárbaros sertões gemi, vagante;
Falta-me inda o pior, falta-me agora
Ver Gertrúria nos braços doutro amante.
Três imagens estão presentes em sua mente de exilado: Ovídio, “o vate de Corina”, Camões, também perseguido pelo “grão gigante”, e a “alva Gertrúria”.
Volta e encontra D. Gertrudes Margarida da Cunha de Eça Castelo Branco casada com o advogado Gil du Bocage. Alguns biógrafos acreditam que essa era a Gertrudes inspiradora de muitos e belos poemas, além de sua “aventura no Oriente”. Retoma a vida boêmia. Ingressa na Nova Arcádia, que reúne os poetas portugueses da época. Publica livros que alcançam êxito. Briga com os outros árcades. Polemiza. Satiriza os costumes da época. Afasta-se da Arcádia. Sirva de exemplo o soneto que faz parte de sua obra que circula semiclandestinamente, dedicada ao mulato Domingos Caldas Barbosa, padre e poeta:
Nojenta prole da rainha Ginga,
Sabujento ladrador, cara de mico,
Loquaz saguim, burlesco Teodorico,
Osga torrada, estúpido rezinga;

E não de acuso de poeta pinga;
Tens lido o mestre Inácio, e o bom Supico;
De ocas idéias tens o casco rico,
Mas teus versos tresandam a catinga;

Se a tua musa nos outeiros campa,
Se ao Miranda fizeste ode demente,
E o mais, que ao mundo estólido se incampa:

É porque sendo, oh! Caldas, tão somente
Um cafre, um gozo, um néscio, um pavo, um trapa
Queres meter nariz no cu de gente.
É preso acusado de crimes contra o Estado e a Igreja. Libertado, passa a ganhar a vida como tradutor, para sustentar a irmã e uma sobrinha pequena. Continua a publicar seus versos.
Contraditório, como ele mesmo o reconhece. Era consciente do seu valor literário e do sentido real dos seus versos, “que foram com violência /Escritos pela mão do Fingimento, /Cantados pela voz da Dependência”. O Fingimento faz de seus poemas pré-românticos, alguns deles até ultra-românticos; a Dependência se manifesta nos versos laudatórios. Essa contraditoriedade é que faz o poeta, e um dos maiores da Língua Portuguesa.
O mais interessante é que, quase duzentos anos depois de morto, Bocage continua censurado e mais conhecido pelas piadas ou anedotas inventadas a seu respeito. Essa censura vai muito além da herança inquisitorial, tanto que o Ministério da Educação de Portugal, em pleno século XXI, andou impondo limites ao estudo de sua obra nas escolas lusitanas. Essa medida lembra disposições do fascismo salazarista e do ultramontanismo de alguns religiosos contra a memória da alentejana Florbela Espanca. Como se o Estado tivesse poder de estabelecer o cânone artístico.
O verdadeiro Bocage é desconhecido, inclusive nos meios cultos e letrados. Está na hora de um amplo movimento para que o poeta seja anistiado, abrindo-se as portas inquisitorais para que sua obra veja a luz do sol. Anistia para Bocage!
(Texto publicado no Jornal Rotta, de Passo Fundo, nos meses de janeiro e fevereiro de 2004 e no sítio Diário Vermelho, a 24 de janeiro de 2004).

Submited by

quinta-feira, janeiro 22, 2009 - 00:27

Prosas :

No votes yet

PauloMonteiro

imagem de PauloMonteiro
Offline
Título: Membro
Última vez online: há 11 anos 22 semanas
Membro desde: 01/19/2009
Conteúdos:
Pontos: 611

Comentários

imagem de Anonymous

Re: Anistia para Bocage!

Achei absolutamente genial o formato que apresentas este texto, intercalando dados biograficos com poesia.

Beijo

imagem de PauloMonteiro

Resposta

Prezado Anonymous:
Bocage é um dos meus autores preferidos. Ainda menino, aprendi com meu avô paterno admirar o grande poeta. Álvaro Soares da Silva, meu avô, neto de portugueses contava que um dos seus ancestrais teria sido amigo do poeta, que foi um dos homens mais corajosos do seu tempo, ao atacar a hipocrisia.
Obrigado.
Paulo Monteiro

Add comment

Se logue para poder enviar comentários

other contents of PauloMonteiro

Tópico Título Respostas Views Last Postícone de ordenação Língua
Prosas/Outros BIOGRAFIA DE PAULO MONTEIRO 2 767 01/09/2010 - 18:35 Português
Poesia/Dedicado POEMA DE FORMATURA 4 658 12/29/2009 - 16:47 Português
Prosas/Outros ACADEMIA PASSO-FUNDENSE DE LETRAS CONVOCA ASSEMBLÉIA GERAL PARA ELEGER NOVA DIRETORIA 2 644 12/04/2009 - 15:52 Português
Prosas/Outros Academia Passo-Fundense de Letras - Estatuto Social e Regimentos Internos 2 817 11/30/2009 - 03:09 Português
Prosas/Outros O jornal feito por pessoas e para pessoas 2 610 11/30/2009 - 03:06 Português
Poesia/Soneto Soneto do absurdo 6 525 11/27/2009 - 16:28 Português
Prosas/Outros DEUS FALA PELA BOCA DOS POETAS 2 945 11/27/2009 - 15:26 Português
Poesia/Soneto só os meus sonhos... 6 365 11/27/2009 - 11:58 Português
Prosas/Outros A VARA E OS LIVROS 1 765 11/26/2009 - 16:02 Português
Prosas/Outros ECONOMIA, POLÍTICA E LITERATURA 2 597 11/22/2009 - 18:36 Português
Prosas/Outros O Riso do Fantástico 2 743 11/22/2009 - 18:33 Português
Prosas/Outros OS DOIS COMBATES DO PASSO DO CRUZ 4 566 10/25/2009 - 23:40 Português
Prosas/Outros Enciclopédia do Futebol Gaúcho 2 971 08/06/2009 - 23:19 Português
Prosas/Outros Sete décadas e um dia especial 2 599 04/12/2009 - 22:59 Português
Prosas/Outros A Violência na Escola é Violência Contra a Escola 4 867 02/28/2009 - 00:17 Português
Prosas/Outros A Verdade Sufocada 5 774 02/18/2009 - 22:51 Português
Prosas/Outros Sangrando a memória da cidade 2 630 02/16/2009 - 14:34 Português
Prosas/Outros Os Gaúchos de Charles Darwin 2 539 02/09/2009 - 23:51 Português
Prosas/Outros Um poeta antitético 2 1.211 01/25/2009 - 20:00 Português
Prosas/Outros Academia Passo-Fundense de Letras - o ano acadêmico de 2008 3 693 01/24/2009 - 01:03 Português
Prosas/Outros Las Satrapías - o Poema Enterrado Vivo 1 889 01/22/2009 - 22:00 Português