Querida Amiga

"Olá amiga,

Oi, tudo bem? Por aqui vai tudo acontecendo, sabe-se lá por que raio. Faz já algum tempo que não tenho notícias tuas, nem tu notícias minhas, mas olha, sabes bem que a minha agenda parece o interior de um autocarro em hora de ponta. Tenho sorte, pois tenho estado doente o que me dá tempo para reflectir e para te escrever.
Tenho um emprego novo. Foi através de uns conhecidos de uns amigos dos meus tios do Alentejo que por sorte já me conheciam, quando eu andava com o marido da mulher da lavandaria, aqui perto de onde estou a morar, que por coincidência até são meus vizinhos e nem são casados. Eles têm oito filhos, três dos quais são só dela e de dois pais diferentes. Dois deles são legítimos de ambos e os restantes são dele e das três ex-mulheres.
Agora sou a baby-sitter dos oito. Nem imaginas a trabalheira que tenho tido! Ao mais velho, que tem uns quinze anos, tento dar umas explicações de matemática, geografia, inglês, contabilidade, português, história, filosofia e ginástica. Eles, os pais, disseram--me que ele tem muitas dificuldades porque quando tinha sete anos ainda não sabia dizer "papá; mamã; qué pápa", nem pedir para ir ao quarto-de-banho. Coitado! Depois há outra que é a segunda mais velha. A essa estou a ensinar a andar de bicicleta. Como tu sabes, de bicicletas só as conheço de vista e de nome, mas não quis dar a minha parte fraca e comprei um livro intitulado: "Como aprender a ensinar a andar de bicicleta sem nunca ter aprendido tal proeza.". Olha, confesso que me tenho esforçado loucamente para que tudo corra bem, mas a miúda já caiu uma data de vezes. Numa delas rachou a cabeça e levou cinco pontos, noutra partiu uma clavícula e o pai ia me partindo o pescoço, e ontem deu cabo do nariz, esfolou os joelhos e os cotovelos. Ela disse que ia fazer queixa aos pais, mas eu ameacei que se o fizesse nunca mais a ensinava a andar de bicicleta.
A terceira filha é um anjo na terra. Tem doze anos e é a que dá menos trabalho. Passa toda a semana em casa dos primeiros avós e só vem para casa aos fins-de-semana, quando estou de folga. O mais novo...Valente peste! Tem por volta de nove e um quarto anos e passa o dia a atirar fisgadas aos pássaros, a esmagar aranhas e moscas, a puxar as saias da velhota do quiosque e a deitar tanto ranho, mas tanto ranho, como se tivesse uma fonte inesgotável daquele produto nojento e repelente. Eu sempre que posso mando-o lá para fora apanhar pássaros ou outro tipo de bicho que sirva para o mesmo fim. A outra, mais nova três anos que o último, chora por tudo e por nada. Obriga-me a ver o Dragon Ball todos os dias e ainda por cima tenho de traduzir palavra por palavra tudo o que o que os bonecos dizem e no final de cada episódio obriga-me a explicar tudo o que se passou. Ainda tenho que inventar umas tretas quaisquer, mas não acredita e começa numa gritaria e num berreiro que tenho que a enfiar lá numa despensa com arrumos de produtos domésticos até ela ficar meio anestesiada e por fim calar-se. As restantes crianças também me enchem as medidas. Nenhuma delas conhece o pai (tal como a mãe) ou os pais. Todos os santos dias acordam às seis da manhã, acordam-me aos saltos em cima da cama e atiram-me com água, plasticina e com outros objectos desconhecidos. Às vezes entro em loucura total, mando um berro horrendo e assustador, eles assustam-se, acordam os pais, assustam-nos e eles assustam-me com ameaças do género: se eu voltar a espancar os seus anjinhos (ou dos outros...), que me despedem com um processo criminal a acompanhar. Outras vezes contento-me contando os dias até receber o ordenado pelo qual me sacrifico. Depois obrigam-me a fazer-lhes o pequeno-almoço constituído por: ovos estrelados; ovos escalfados; hambúrgueres suculentos; maçãs descascadas; queijo derretido; salsichas fritas; pães com tulicreme e duas garrafas de dois litros de Coca-Cola. Depois tenho que o levar às camas onde os anjinhos esperam pacientemente enquanto arrancam com as unhas a tinta que resta das paredes.
Escreve a contar novidades. Ouvi dizer que o teu irmão deixou a namorada para ter um tórrido romance com um colega de trabalho, é verdade? E tu? Ouvi uns rumores que o teu namorado fugiu com um colega de escola. Isso é verdade?
Escreve amanhã, há já um ano que não tenho notícias tuas. Também anda aí um boato que tu morreste há mais de um ano...São as más-línguas, sabes como é...

Até à vista!"

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Monday, February 8, 2010 - 22:02

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Benedita

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Re: Querida Amiga

Benedita

Espectacular!!!

Confesso que não sou adepta de grandes
contos :-) mas..... rendi-me á sua leitura que muito me fascinou!

Voltarei!....

Paz,e luz!

mm

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