Mas Viveremos (Carlos Drummond de Andrade)

Já não há mãos dadas no mundo.
Elas agora viajarão sozinhas.
Sem o fogo dos velhos contatos,
que ardia por dentro e dava coragem.

Desfeito o abraço que me permitia,
homem da roça, percorrer a estepe,
sentir o negro, dormir a teu lado,
irmão chinês, mexicano ou báltico.

Já não olharei sobre o oceano
para decifrar no céu noturno
uma estrela vermelha, pura e trágica,
e seus raios de glória e de esperança.

Já não distinguirei na voz do vento
(Trabalhadores, uni-vos...) a mensagem
que ensinava a esperar, a combater,
a calar, desprezar e ter amor.

Há mais de vinte anos caminhávamos
sem nos vermos, de longe, disfarçados
mas a um grito, no escuro, respondia
outro grito, outro homem, outra certeza.

Muitas vezes julgamos ver a aurora
e sua rosa de fogo à nossa frente.
Era apenas, na noite, uma fogueira.
Voltava a noite, mais noite, mais completa.

E que dificuldade de falar!
Nem palavras nem códigos: apenas
montanhas e montanhas e montanhas,
oceanos e oceanos e oceanos.

Mas um livro, por baixo do colchão,
era súbito um beijo, uma carícia,
uma paz sobre o corpo se alastrando
e teu retrato, amigo, consolava.

Pois às vezes nem isso. Nada tínhamos
a não ser estas chagas pelas pernas,
este frio, esta ilha, este presídio,
este insulto, este cuspo, esta confiança.

No mar estava escrita uma cidade,
no campo ela crescia, na lagoa,
no sítio negro, em tudo onde pisasse
alguém, se desenhava tua imagem,

teu brilho, tuas pontas, teu império
e teu sangue e teu bafo e tua pálpebra,
estrela: cada um te possuía.
Era inútil queimar-te, cintilavas.

Hoje quedamos sós. Em toda parte,
somos muitos e sós. Eu, como os outros.
Já não sei vossos nomes nem vos olho
na boca, onde a palavra se calou.

Voltamos a viver na solidão,
temos de agir na linha do gasômetro,
do bar, da nossa rua: prisioneiros
de uma cidade estreita e sem ventanas.

Mas, viveremos. A dor foi esquecida
nos combates de rua, entre destroços.
Toda melancolia dissipou-se
em sol, em sangue, em vozes de protesto.

Já não cultivamos amargura
nem sabemos sofrer. Já dominamos
essa matéria escura, já nos vemos
em plena força de homens libertados.

Pouco importa que dedos se desliguem
e não se escrevam cartas nem se façam
sinais da praia ao rubro couraçado.
Ele chegará, ele viaja o mundo.

E ganhará enfim todos os portos,
avião sem bembas entre Natal e China,
petróleo, flores, crianças estudando,
beijo de moça, trigo e sol nascendo.

Ele caminhará nas avenidas,
entrará nas casas, abolirá os mortos.
Ele viaja sempre, esse navio,
essa rosa, esse canto, essa palavra.


Carlos Drummond de Andrade. grande poeta brasileiro.

Submited by

Friday, December 31, 2010 - 15:48

Poesia :

No votes yet

AjAraujo

AjAraujo's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 7 years 12 weeks ago
Joined: 10/29/2009
Posts:
Points: 15584

Add comment

Login to post comments

other contents of AjAraujo

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Dedicated Prece 0 1.464 07/23/2011 - 21:36 Portuguese
Poesia/Intervention Por que hoje? 0 831 07/23/2011 - 21:34 Portuguese
Videos/Music Ciranda da bailarina (Chico Buarque & Edu Lobo) 0 7.384 07/23/2011 - 21:06 Portuguese
Videos/Music Vento Bravo, E. Lobo & P. Cesar Pinheiro (Edu Lobo & Tom Jobim) 0 5.631 07/23/2011 - 21:01 Portuguese
Videos/Music Luiza, de Tom Jobim (Edu Lobo & Tom Jobim) 0 4.639 07/23/2011 - 21:00 Portuguese
Videos/Music Beatriz (Chico Buarque & Edu Lobo) 0 5.504 07/23/2011 - 20:56 Portuguese
Videos/Music Choro Bandido, Edu Lobo & Chico Buarque (Edu Lobo) 0 3.305 07/23/2011 - 20:53 Portuguese
Videos/Music Na Carreira, Edu Lobo & Chico Buarque (Edu Lobo) 0 2.523 07/23/2011 - 20:51 Portuguese
Videos/Music No Cordão da Saideira, DVD Vento Bravo (Edu Lobo) 0 2.045 07/23/2011 - 20:49 Portuguese
Videos/Music Corrida de Jangada, Edu Lobo & Capinam (Edu Lobo) 0 4.427 07/23/2011 - 20:48 Portuguese
Videos/Music A Moça do Sonho, Chico Buarque & Edu Lobo (Edu Lobo) 0 4.850 07/23/2011 - 20:46 Portuguese
Poesia/Intervention Quisera 0 4.667 07/23/2011 - 11:39 Portuguese
Poesia/Love Quando chegar a primavera 0 935 07/23/2011 - 11:37 Portuguese
Poesia/Love Que paixão é esta? 0 3.842 07/23/2011 - 11:35 Portuguese
Poesia/Haiku Que amores inspiras? 0 3.659 07/23/2011 - 11:34 Portuguese
Videos/Music Disparada, de Geraldo Vandré - Ao Vivo no Teatro Santa Isabel (Quinteto Violado) 0 5.336 07/23/2011 - 01:55 Portuguese
Videos/Music Ventania, de Geraldo Vandré (Quinteto Violado) 0 6.742 07/23/2011 - 01:51 Portuguese
Videos/Music Aroeira, Festival Record 1967 (Geraldo Vandré) 0 6.540 07/23/2011 - 01:42 Portuguese
Videos/Music Disparada, de Geraldo Vandré e Theo de Barros - Festival 1966 (Jair Rodrigues) 0 12.049 07/23/2011 - 01:40 Portuguese
Videos/Music A canção primeira (Geraldo Vandré) 0 5.278 07/23/2011 - 01:35 Portuguese
Videos/Music Sonho de um Carnaval, de Chico Buarque (Geraldo Vandré) 0 2.951 07/23/2011 - 01:31 Portuguese
Videos/Music Ladainha (Geraldo Vandré) 0 2.382 07/23/2011 - 01:29 Portuguese
Videos/Music Pra Não Dizer Que Nao Falei Das Flores, de Geraldo Vandré (Zé Ramalho) 0 7.710 07/23/2011 - 01:26 Portuguese
Videos/Music Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros (Coral: Meninas Cantoras de Petrópolis, RJ) 0 4.513 07/23/2011 - 01:22 Portuguese
Videos/Music Geraldo Vandré, cantor e compositor - Entrevista à Globonews, 2010 - Parte 4/4 0 5.059 07/23/2011 - 01:18 Portuguese