APÓLOGOS IV

4
O corvo e o rouxinol

Vinha apontando a serena
Percursora do aureo sol,
E entoava em selva amena
Um saudoso rouxinol
Maviosa cantilena.

A voz, que aos ares soltava,
Attraía o côro alado,
Que em torno d'elle pousava:
Assim não fosse escutado
De um corvo, que ali morava.

Cego de inveja, e furor,
Detestando a melodia
Do namorado cantor,
Comsigo mesmo dizia
O sinistro, o grasnador:

«Que este animalsinho encanto
Tudo, apenas abre a boca,
E que eu afugente, espante
Com voz desabrida, e rouca
Quanto se me põe diante!

«Aos homens no meu pregão
Infaustos annuncios mando
(Diz a vã superstição)
E tenho certa, em grasnando,
Ou pedrada, ou maldição.

«A raiva em meu peito acceza
Com o que escuto se atiça:
Soffrer vantage é vileza;
Vou-me vingar da injustiça,
Que me faz a Natureza.»

Eis n'isto o bruto agoureiro
Para o rouxinol caminha,
Mostrando-se prazenteiro,
E á delicada avesinha
Diz com modo lisongeiro:

«Respira tanta doçura
O teu canto, que por certo
Abranda a penha mais dura;
E assim de te ouvir de perto
Quero ter hoje a ventura.

«Não fujas, cantor mimoso,
Não te assustes, continúa.
Como o céo te fez ditoso !
Que linda prenda é a tua !
Que voz! Que dom milagroso ! »

Não tendo astucia, que sonde
O projecto, que o malvado
Nas vis entranhas esconde,
Já da lisonja tentado,
O passarinho responde:

«Sejas bem vindo, que assás
Afortunado me acclamo
Em vêr que attenção me dás;
Pousa aqui sobre este ramo,
E a teu commodo ouvirás.»

«Vamos, de novo começa,
Que a teus sons o ouvido applico...»
Torna o corvo, e se arremessa,
E no torto, negro bico
O pobresinho atravessa.

Elle em tamanha afflicção
Entra a carpir-se da Sorte,
E ao invejoso glotão
Diz, sentindo já da morte
As ancias, a convulsão:

«Que fiz, que te obrigue a tanto ?
Meigos amores suaves
Em dôces versos eu canto:
Eu sou a gloria das aves,
Eu sou dos bosques o encanto.»

D'esta arte pediu favor
O melhor dos passarinhos,
Porém foi vão seu clamor,
Que moendo-lhe os ossinhos,
Assim gagueja o traidor:

«Simples, vaidoso, insensato !
Devias ser mais remísso
Em produzir teu retrato:
Não te defendes com isso,
Que por isso é que eu te mato.»

Submited by

Domingo, Octubre 11, 2009 - 17:10

Poesia Consagrada :

Sin votos aún

Bocage

Imagen de Bocage
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 13 años 27 semanas
Integró: 10/12/2008
Posts:
Points: 1162

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of Bocage

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia Consagrada/Soneto Soneto ao Árcade Lereno 0 1.205 11/19/2010 - 16:49 Portuguese
Poesia Consagrada/Soneto Soneto ao Leitão 0 975 11/19/2010 - 16:49 Portuguese
Poesia Consagrada/Soneto Soneto Arcádico 0 1.327 11/19/2010 - 16:49 Portuguese
Poesia Consagrada/Soneto Soneto da Amada Gabada 0 1.953 11/19/2010 - 16:49 Portuguese
Poesia Consagrada/Erótico A Ulina 0 3.195 11/19/2010 - 16:49 Portuguese
Poesia Consagrada/Meditación Auto-retrato 0 2.869 11/19/2010 - 16:49 Portuguese
Poesia Consagrada/General À morte de Leandro e Hero 0 855 11/19/2010 - 16:49 Portuguese
Poesia Consagrada/General Cantata à morte de Inês de Castro 0 1.121 11/19/2010 - 16:49 Portuguese
Poesia Consagrada/General Cartas de Olinda e Alzira 0 1.274 11/19/2010 - 16:49 Portuguese
Poesia/Erótico Arreitada donzela em fofo leito 3 1.398 02/28/2010 - 13:18 Portuguese
Poesia/Erótico Lá quando em mim perder a humanidade 1 1.368 02/28/2010 - 13:15 Portuguese