Eu Rebelde
Olho-me num espelho e sei que não sou eu;
Penso e sei que não é a minha consciência que pensa;
Falo e não é a minha voz que oiço.
Não sei!
É tudo tão diverso
E, contudo, tão constante,
Só eu é que não sou eu.
Não sou um Eu Singular:
Com a minha morte tornei-me
Num Eu Plural
E só com a morte me tornarei,
Novamente,
Num Eu Singular.
Perco-me nos labirintos de mim,
Submerso em sonhos
Que não são meus.
Acordo para a vida
De alegrias e tristezas,
Que não são minhas
E percebo que sou
A concórdia do discorde,
A unidade do múltiplo,
E faça o que fizer
Jamais serei eu outra vez.
Sou apenas um Eu Rebelde,
Disperso em mim,
Fechado num corpo partilhado
Comigo mesmo
E que apenas o sono final
Me fará regressar a mim,
Me fará ser singular,
Num corpo singular,
Num caixão singular,
Num sepulcro singular.
Mas enquanto vivo
Serei plural,
Fechado numa cela comum
Com os outros Eus,
Pensando e sentindo
O que eles pensam e sentem,
Falando e não reconhecendo as palavras,
E, ofuscado com o brilho
Que deles imana,
Perco-me em desvaneios
De sons e cores,
Que não oiço, nem vejo...
Então verifico
Que só posso ser eu
Se for plural,
E que singular só serei
Quando morrer.
Aí calar-se-ão as vozes,
Pararão os pensamentos,
Acabarão os reflexos confusos,
E os outros,
Em romaria em volta do caixão,
Dirão que precisam de outro hospedeiro,
Para que as vozes, os pensamentos,
Os sentimentos, as alegrias a as tristezas,
Deles continuarem a admirar o mundo.
Mas eu, ali deitado,
A dormir e a sonhar,
Serei singular como era
Antes da morte
Que me tornou plural.
E eis que,
Para surpresa de todos,
Abro os olhos
E levanto-me do caixão.
Olho em redor de mim
E vejo os outros
Todos a recuarem,
Tão surpresos comigo,
Como eu com eles.
Entre gritos e desmaios,
Saio daquele caixão,
Daquela sala,
E, como sonâmbulo, ando,
Vou até ao topo de um monte
Respirar fundo,
Respirar ar antes puro.
À volta, até onde a vista alcança,
Vejo minúsculas casas,
Minúsculos carros,
Minúsculas pessoas,
E pergunto-me se não seremos
Simples formigas no mundo,
Para os olhos de quem olha de cima,
Com as nossas tarefas divididas,
Com os nossos carreiros percorridos.
De súbito, vejo-me rodeado pelos outros.
Tinham subido o monte
Atrás de mim,
Querendo regressar
A assombrar a minha existência.
- NÃO! Grito eu.
E do topo do promontório
Lanço-me,
Indo bater,
Em cheio,
Nas velhas rochas onde
O mar lava o meu sangue,
Tornando-me eu Uno com a Terra
E o mar.
Os outros olharam entre si
E sem dizerem uma palavra,
Pegaram numa flor silvestre
E lançaram-na para o abismo,
Para mim...
Depois, ainda em silêncio,
Partiram, cada um para o seu lado.
Terão regressado às suas terras
Nos confins do mundo,
Para aí igualarem-me
No sacrifício,
Lançando-se também eles
Ao abismo profundo
Unindo-se a mim e à Terra;
Ou então ainda existem,
Ainda assombram o mundo
Com os seus feitos, palavras e sonhos,
Levando à loucura outros que não eu.
Mas eu, finalmente, voltei a ser singular,
Voltei a ser Eu
E de mim são
As palavras que falo;
Os sonhos que sonho;
Os reflexos que vejo;
Sou Eu,
Outra vez Eu,
Apenas Eu...
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