CONCURSOS:

Edite o seu Livro! A corpos editora edita todos os géneros literários. Clique aqui.
Quer editar o seu livro de Poesia?  Clique aqui.
Procuram-se modelos para as nossas capas! Clique aqui.
Procuram-se atores e atrizes! Clique aqui.

 

“A MINHA VIDA É UMA PORCARIA”

“A MINHA VIDA É UMA PORCARIA”

São nove horas da manhã do primaveril 4º dia do 4º mês do ano de 1974 e o Sol, apesar de radiante, não dissipa a fria orvalhada, nem acalma a gélida brisa, que teima em arrancar as pétalas das flores que timidamente despertam para o seu colorido ciclo.

A aldeia, simplesmente chamada de Vale da Pedra, parece acordar com a alegria das três dezenas de crianças que correm para a escola, podendo perceber-se que a infantil festa é algo dissipada pela traquinice de um garoto que se diverte a infernizar todos quantos o rodeiam, principalmente às raparigas, a quem puxa os compridos cabelos.

O grupo, afogueado das correrias, entra tempestuosamente na grande sala da escola, um edifício de austero traço arquitectónico, onde crepita já uma agradável fogueira na enorme lareira que expande o calor a todos os recantos.

Erecta e silenciosa, a professora vigia a sempre algo convulsa entrada dos seus pupilos. É uma jovem e bonita mulher, de ar meigo, doce, que irradia simpatia e compreensão, embora o seu olhar, já sobejamente conhecido das crianças, revele autoridade e segurança em relação à disciplina e à educação.

As crianças, divididas pelas quatro classes, ocupam os lugares habituais, na sua natural excitação de quem inicia mais um aventura e, lentamente, o silêncio instala-se para o obrigatório cumprimento à docente.

O trabalho começa. Adélia, a jovem professora, inicia a sua tarefa com a ocupação das classes mais novas, a quem entrega um simples texto para que copiem e estudem, dedicando-se de seguida às classes mais avançadas, principalmente à sua quarta, franzindo o cenho face à agitação reinante entre a dezena e meia de alunos, principalmente entre as pequenas que vivem como que em permanente desassossego.

Rapidamente descobre a causa, a mesma de sempre, na pessoa de José, o seu mais insurrecto aluno, um rapaz muito franzino que parece felicíssimo a puxar os longos cabelos das companheiras. Conhece-o perfeitamente, aliás, conhece cada um dos seus pupilos. É oriundo de uma família muito modesta, revela como que uma incontida e permanente revolta, que se traduz na sua rebelde e quase que insuportável traquinice que o conduz a um comportamento que o transforma como que num pária desprezado por todos.

Lamenta-o, é um dos mais inteligentes alunos, mas simultaneamente extremamente indisciplinado, incapaz de preservar seja o que for, tanto que continua a frequentar as aulas sem qualquer livro ou caderno.

É sempre um dos mais atentos, desde que o consiga prender. Consegue assimilar tudo quanto ouve, embora o esqueça rapidamente, talvez fazendo-o propositadamente. Já nem sabe o que lhe fazer, nem sequer o que lhe dizer para que compreenda que na vida tudo tem regras para cumprir.

Neste momento apanha-o em flagrante delito, encontra-se muito entretido a puxar a trança à companheira à sua frente. Calmamente aproxima-se, coloca-se nas suas costas e, quando ele se prepara para apertar o nó que faz na trança, prende-lhe as mãos e arrasta-o para a porta de saída e expulsa-o da aula.

Toda a sala a fita silenciosa, de olhar receoso e estremece ao julgar ler em alguns simples, tímidos e brilhantes olhares, um lampejo de censura. Inspira fortemente, acaricia algumas cabeças e dirige-se directamente à quarta classe, ordenando-lhe que se prepare para ler o trabalho de casa, uma redacção cujo tema é “ A minha vida”.

Em primeiro lugar lê Fernanda, uma garota muito simpática, de rosto bonito e redondo, sempre muito alegre e que muito desenvolta obedece em voz alta e de agradável tom.

“A minha vida”

Eu gosto da vida que tenho, embora comece a ser algo monótona. Todos os dias a minha ama acorda-me às oito horas da manhã. Tomo o matinal banho, como o pequeno-almoço, que a minha cozinheira me prepara, e depois o meu mordomo leva-me no carro para a escola, onde estudo e brinco com os meus amigos.

No meu regresso a casa a minha ama espera-me com um bom lanche, que tomo acompanhada de alguns amigos, depois faço os trabalhos de casa e estudo até à hora do jantar. Depois jogo um pouco na consola de jogos e deito-me.

Sou muito feliz com a minha vida, só não gosto muito que os meus papás nunca se encontrem quando janto, não estejam quando me deito e nem tenham tempo para falar comigo.

--Muito bem Nandinha. Agora tu, Belinha.

Esta é uma garota espevitada, de olhar muito brilhante, inteligente e até algo atrevido, que se levanta e lê.

“A minha Vida”

Sou muito feliz com a minha vida. Os meus papás trabalham em Lisboa, em grandes escritórios de doutores, e saem todos os dias às sete horas da manhã. A minha ama acorda-me, ajuda-me no banho e dá-me o pequeno-almoço e seguidamente acompanha-me até à escola onde estudo e brinco muito.

Quando a escola acaba regresso a casa na companhia da minha ama, tomo o meu lanche, estudo e faço os trabalhos de casa e depois brinco com a minha “barbie” no meu quarto de brinquedos até à hora do jantar. Seguidamente vejo um pouco de televisão até à hora estipulada pelos meus papás e deito-me com a minha ama a ler-me uma história.

Gosto muito da minha vida e gosto muito da escola e da minha professora.

--Muito bem, Belinha. Agora tu, Catinha.
--Senhora professora eu... bem, eu fiz a redacção, mas... mas a incompetente da minha criada de quarto não me pôs o caderno na mala...
--Está bem, amanhã lês. Agora tu, Joaninha.
--Senhora professora posso...posso pedir-lhe um favor?
--Sim?
--Bem, eu fiz a minha redacção, mas gostava que me deixasse ler depois a redacção do José.
--Como?! Desse?!
--Sim Senhora professora, eu explico. Ele, bem, ele é muito pobre, os pais dele não têm dinheiro para lhe comprarem outro caderno, o que tinha está já cheio e eu deixei-o escrever no meu. Até já pedi à minha mãe que lhe compre um, era para me comprar uma boneca, mas prefiro que lhe compre o caderno.
--Muito bem, lê então a tua em primeiro lugar.

“A minha vida”

Sou muito feliz com a minha vida e a família que tenho.

Tenho uma irmã que é mais nova que eu, chama-se Isabel, tem apenas três anitos e adora imitar-me. Chego até a irritar-me com ela algumas vezes, porque no seu desejo de ser como eu, por vezes risca-me os cadernos, o que me obriga a dar-lhe folhas para que escreva e desenhe, o que a torna muito feliz uma vez que já consegue escrever o seu nome.

Os meus papás trabalham na capital, são muito amigos e também muito nossos amigos e nós adoramo-los.

A minha mamã acorda-me todos os dias às oito horas da manhã. Tomo o matinal banho, ajudo a preparar a minha irmã, tomamos o pequeno-almoço e seguidamente os meus papás levam a Isabel aos meus avós enquanto eu venho para a escola com os meus amigos.

Na escola estudo e brinco muito com os meus amigos. Temos uma professora que ensina muito bem, é muito compreensiva e também muito exigente para que sejamos todos disciplinados.

Ao terminar a escola regresso a casa com os meus amigos, vou ter com os meus avós onde faço os trabalhos de casa, estudo e brinco com a Isabelinha até à chegada dos papás. Em casa ajuda a mamã a fazer o jantar, depois jantamos todos juntos, conversamos sobre o nosso dia, vemos televisão e finalmente deito-me com os papás a lerem ou a contarem uma história que faz com que, pelo menos a minha irmã, adormeça mais depressa.

Uma das histórias que o meu papá conta e de que gosto mais, apesar de me fazer sempre chorar quando a ouço, fala de crianças que não têm família, que são obrigadas a viver em escolas de órfãos e onde muitas vezes não recebem qualquer carinho nem têm comida como a que comemos na minha casa. Fala também de crianças que têm pais que não as podem ajudar nos trabalhos de casa porque não sabem ler nem escrever e que muitas vezes até chegam a passar fome por não terem comer em casa. Perguntei ao meu papá porque é que é assim, mas ele não me soube explicar. Não consigo compreender como é que existem pais que não sabem ler nem escrever, que não têm comida em casa apesar de trabalharem como os meus papás. Acho que não é justo, todos deviam ter comer e uma casa para viver.
Eu sou muito feliz com a vida que tenho, quando for adulta, quero trabalhar para que todas as pessoas tenham uma vida feliz como a que tenho.

--Muito bem Joaninha. Quem te ajudou?
--A minha mamã, senhora professora. Eu escrevi e ela corrigiu os meus erros. Senhora professora, porque é que o mundo tem de ser assim, com gente muito rica e gente muito pobre?
--Não tem de ser assim, querida. Quando fores maior irás compreender que não tem de ser assim, agora lê então a redacção do José.

“ A minha vida é uma porcaria”

Sou o mais velho de cinco filhos, tenho duas irmãs e dois irmãos muito pequenos de que tenho que cuidar todos os dias.

Os meus pais são muito pobres, trabalham muito mas não ganham que chegue para nos darem o que necessitamos. Vivemos numa casa já muito velha, feita em adobes de terra batida e é o meu pai que a repara com a minha ajuda para que não chova nem faça frio no Inverno.

Não temos luz eléctrica como as outras pessoas, porque custa muito dinheiro e o meu pai não o tem. Não temos televisão, a única coisa que temos é uma pequena telefonia que trabalha a pilhas. Não temos água canalizada e por isso não temos esquentador. Para podermos tomar banho, temos que aquecer a água numa grande panela de ferro.

Levanto-me todos os dias às sete horas da manhã para levar os animais para a pastagem. São três bezerros, seis ovelhas e cinco cabras, que o meu pai vai vender quando estiverem gordos para poder ter dinheiro para mandar colocar a luz eléctrica em casa.

Depois aqueço o leite, faço sopas e como com os meus irmãos que depois levo para a casa dos meus avós. Seguidamente espero pela Joaninha para irmos para a escola. Ela é a minha única amiga. Só ela me compreende e gosta de mim. Dá-me muitas vezes do seu lanche, deixa-me escrever nos seus cadernos quando os meus ficam cheios e tenho de esperar que os meus pais me possam comprar outros.
Não percebo isto, todos os meus colegas têm livros e cadernos sempre que precisam, só eu não, só porque os meus pais são pobres. Porque é que eles são pobres, se trabalham todos os dias e saem para o trabalho todos os dias às seis horas da manhã e regressam às oito horas da tarde? Porque é que eu e os meus irmãos não temos roupas como os meus colegas? Porque é que o que vestimos tem de ser a minha mãe a fazer com tecidos que arranja das roupas que ela e o meu pai já não podem usar?

Na escola ninguém gosta de mim, dizem que sou mau. Porque é que eu sou mau? Porque é que nunca querem brincar comigo? Eu vingo-me, puxo os cabelos às raparigas, menos às Joaninha, prego partidas a todos e dou muitas vezes encontrões nos rapazes.

Gosto muito de jogar à bola, mas nenhum dos rapazes me aceita e também só o posso fazer descalço, porque não posso estragar os sapatos. Porque é que não posso ser como todas as outras crianças? Ter cadernos, livros, brinquedos e amigos?

A única amiga que tenho é a Joaninha, por isso, sempre que a minha mãe faz queijo fresco eu levo-lhe sempre um bocado, assim como lhe levo laranjas, que é a única fruta que temos lá em casa. Às vezes, quando as galinhas põem mais ovos, levo-lhe alguns porque ela não tem criação.
Eu gosto muito dos meus pais, mas a minha vida não presta, é uma porcaria e não a quero.
--Joaninha!
--Senhora professora foi ele que escreveu, está aqui nas últimas folhas do meu caderno.
--Meu Deus! Meninos, que fazemos?
-- (em uníssono) Vamos chama-lo senhora professora, e ser a partir de agora os seus maiores e melhores amigos.

A professora ao ouvir chorou.
Nem outra coisa podia fazer
A lágrima floriu, desabrochou
Como a esperança a renascer
Premiando-a pelo que ensinou
A amar quem está a sofrer
A ajudar quem quer aprender
A perdoar a quem pecou.

A jovem professora mulher e mãe
Sentiu o seu coração a explodir
Pelo melhor que a vida tem
Que é ser capaz de não deixar cair
Aquele que sendo nada é alguém
Vida que pode e deve um dia florir
Com as melhores cores que a vida tem
Que dão alegria e fazem sorrir

Tu, se um dia na tua vida encontrares
Alguém que também ande baralhado
Não deves nunca as costas voltares
Porque esse para ti sem qualquer sentido
Pode sempre ser um ser recuperado
De onde anda só e confundido
Se, se sentir vivo, gente e querido

Falamos hoje tanto de amor
Que o tornámos em algo vazio
Confundido com a caridade
Algo já muito vago e sem cor
Muito fluído e muito frio
Como objecto sem validade

Somos todos muito caridosos
Quando é dos outros a fome
Assim como dos outros são os idosos
Paixão, sentimento que se consome
Chama que rapidamente se apaga
Como a água que na areia se some

Amor, é sempre uma certeza
Do que se quer para sempre
Como força e companhia
Vale o que se tem interiormente
Que é o sentimento em energia
Que dá cor à visível beleza

JSS.

Submited by

sexta-feira, junho 22, 2012 - 20:44

Prosas :

No votes yet

José Sereno da Silva

imagem de José Sereno da Silva
Offline
Título: Membro
Última vez online: há 11 anos 42 semanas
Membro desde: 06/20/2012
Conteúdos:
Pontos: 37

Add comment

Se logue para poder enviar comentários

other contents of José Sereno da Silva

Tópico Título Respostas Views Last Postícone de ordenação Língua
Poesia/Meditação Palavras. 1 420 06/23/2012 - 16:57 Português
Poesia/Pensamentos Amo-te! 1 483 06/22/2012 - 21:42 Português
Poesia/Pensamentos Falar ao vento! 1 568 06/22/2012 - 20:58 Português
Prosas/Contos “A MINHA VIDA É UMA PORCARIA” 0 483 06/22/2012 - 20:44 Português
Poesia/Pensamentos Um homem também chora. 2 741 06/22/2012 - 20:06 Português
Prosas/Pensamentos Difícil decisão! 0 552 06/22/2012 - 17:53 Português
Prosas/Contos Só os humildes perdoam 0 461 06/22/2012 - 17:11 Português
Prosas/Contos A amizade…. E… a fidelidade! 0 488 06/22/2012 - 16:57 Português