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Ao meu melhor amigo

Quando o sol bebeu a lua eu transformei-me. O mundo transformou-se, tornou-se numa eterna noite, porque a noite engoliu o sol.
As sombras jacentes às sombras da noite, percorriam a escuridão eterna. Eu era cego. Os homens eram cegos, o amor era cego. Elas viam e a justiça observava-nos com um sorriso maquiavélico, de escárnio. A nossa cegueira eram os seus olhos a observar-nos, a nos julgar, a adivinhar o que éramos.
Acima da Terra, dentro de nós, eles percorriam os nossos corpos e sabiam ultrapassar os labirintos das nossas almas.
Fragmentos de almas espalhadas na linha do horizonte, um espaço de estilhaços de Primaveras. Lágrimas que escorrem por entre os dedos desesperados, que percorriam o teu corpo. A minha alma, a tua alma espalhadas neste universo finito na impossibilidade do tacto.
Os teus lábios tocam os meus e o sol derrete o gelo dos nossos corpos sem alma. Nós descobri-mo-nos um dentro do outro, atravessamos os nossos labirintos infinitos rumos aos nossos corações. Deus chora…
As nuvens negras cobrem os nossos corpos. As nossas almas como líquidos, dispersam-se, espalham-se no horizonte. Os teus olhos fitam os meus e nós vê-mo-nos por dentro, o nosso vazio, o nosso corpo sem alma.
Pingam, no precipício do horizonte, as nossas almas fragmentadas e nasce em nós a esperança de união, que talvez, para lá do horizonte, abaixo do horizonte, elas, as almas, se união e que possam ser finalmente eternas. Seremos eternos para lá do horizonte.
Deus disse que seríamos eternos, que seríamos anjos…sem alma.
Distante do tempo, do espaço e de nós, escorre o sangue de um Cristo, de um Deus que nos traiu. O preço da traição é o nosso amor, a nossa alma, a dissolução da nossa existência.
Lembro-me de Erdna, do comboio sem tempo (de tempo sempre igual), lembro-me de Deus no meu quarto a chorar. Lembro-me de ser Deus e de me apaixonar por ti e trocar de posição com um homem. Eu era Deus e tornei-me homem e fiquei com as suas memorias. Eu era novo e não sabia o que fazia. O amor também é uma traição.
***
O vulto na minha cara. O seu vulto reflectido na minha cara.
O rio era o mesmo. Deus era o mesmo, distante de nós nascia o sol e nós estávamos sentados naquela esquina, onde a morte dobra a vida, distante do mundo. O mundo não acreditava em Deus. Deus chorava, sentado a meu lado, naquela esquina.
Eu tinha deixado de acreditar em Deus, desde que Erdna havia partido. Ela era a minha verdadeira amiga e amava-me. Eu era novo, tinha vinte anos, quando ela foi embora. O que mais me revoltou foi saber que ela amava-me e eu amava-a e Deus foi capaz de fazê-la ir embora. Mas que Deus é este que acaba com o amor de quem se ama?! Já não acredito em Deus, disse eu quando ela foi embora, sem olhar para trás.
Eu tinha vinte e cinco anos, quando Deus entrou no meu quarto. Ele vinha pedir desculpa pelo que tinha feito. Deus sabia algo mais sobre ela, sabia algo que eu não sabia, o que fazia ou que passava neste momento.
Eu não acreditava em Deus. Deus era novo e chorou. Prometeu-me que iria encontrar um novo amor para o resto da minha vida e que viveria mais de trezentos anos com ela. Que veria o sol nascer e ela descansaria a sua cabeça no meu ombro ao adormecer, com os seus cabelos cor de cobre espalhado na face.
Prometeu-me que seríamos eternos.
Voltei a acreditar em Deus nesse dia. Aquele Deus novo, que estava a meu lado.
Agora tenho, tenho trinta anos e Deus chora a meu lado, nesta esquina onde a morte dobra a vida, porque a sua promessa não se cumpriu.
- Adeus, Deus…
Olhando-me nos olhos, Deus disse: - Sei que não acreditas em mim e tens razões para isso, mas lembrar-te-ás de mim quando entrares nesse comboio.
Deus sorriu, o seu sorriso era uma manha de Primavera, os seus olhos eram o nascer do sol. Eu voltei a acreditar em Deus, transformei-me em Deus e Deus transformou-se em mim. Eu, que era agora antigo Deus, perdoei-lhe, porque ele era novo e não sabia o que fazia. Aquela criança num corpo de homem era boa de mais para acatar as irresponsabilidades dos homens.
Eu sabia, porque Ele disse-me: “Um dia serás eterno, um anjo e viverás eternamente, só que quando te aperceberes disso já será tarde e voltarás a não acreditar em mim (ti), porque este é o destino que tenho para ti (mim) e não posso altera-lo. Se o fizesse, em vez de não acreditar em mim (ti), os Homens odiar-me-iam. Desculpa”.
Eu parti, entrei num comboio. Não olhei para trás e nunca sobe de Deus.
***
Chorei ao vê-la ir embora, e ela não chorou. As minhas últimas lágrimas mornas caíram sobre a terra. Foi triste vê-la pela última vez. Sob o ultimo raio de luz, naquela linha fina que separa o dia da noite. Ela foi embora. Já passaram cinquenta anos, desde que o sol se pôs naquela tarde fria e ela partiu. Sem dizer nada. Eu segui o seu movimento. Ela não olhou para mim. Os meus olhos eram desertos no meio da chuva grossa e fria que caía e inundava o meu corpo, mas não apagava o incêndio da minha alma.
De alguma maneira, eu sempre soubera que ela me deixaria, mas nunca pensei que fosse desta forma. Ela não olhou para trás. A felicidade deixou-me, naquele dia de Inverno. O Inverno mais frio que vivera até então.
Agora sou velho. Passei os últimos cinquenta anos só, sem alegria, sem felicidade, sem lágrimas, sem dor…só.
As últimas pás de terra, marcaram-me na alma como uma cicatriz, uma cicatriz profunda. Agora, olho para trás e todos estes anos parecem-me um instante. Quando estamos sós, não há horas, não há dias, não há meses nem anos…há tempo, tempo sempre igual. As manhãs são iguais às tardes e às noites. Quando estamos sós, só há tempo. Lembro-me perfeitamente dos olhos dela quando me embalava quando tinha sono, quando falava comigo, sem que eu escutasse uma única palavra. O silêncio esteve sempre presente entre nós.
Os últimos cinquenta anos foram sempre iguais. A tristeza. A solidão. Quando era novo, saí de casa, ainda guardo na memória o som da porta a fechar nas minhas costas como um soluço de um idoso. Os idosos não choram. Soluçam um choro sem lágrimas, quase silencioso, que dá dó, só de se ouvir. O fechar da porta foi o concluir de um último capítulo de vinte anos de amizade a chegar ao fim.
Entrei no carro, e arranquei em direcção á minha melhor amiga. A verdadeira amiga, a única que tive durante os meus setenta anos de vida. A 12 de Janeiro, todos os anos, eu dava-lhe os parabéns. Faz hoje cinquenta anos que ela foi embora e eu nunca mais a vi e eu não lhe dei os parabéns.
Erdna, não era um nome muito usual, mas era assim que eu a tratava. Ela era minha amiga. Eu era amigo dela. Ficava triste quando eu estava triste. Chorava quando eu chorava.
Há cinquenta anos, eu era novo. Há cinquenta anos ela era nova. Éramos amigos e amava-nos. Lembrar-me-ei para sempre, daquele fatídico dia, em que esqueci de lhe dar os parabéns. Esqueci-me do seu aniversário. Ela tinha a mesma idade que eu e nunca se esquecera do meu aniversario. Aquilo era um ritual sagrado entre nós. Entre dois deuses, dois anjos…dois seres que se amavam. Ela fora embora sem olhar. Os meus olhos acompanharam-na até o seu último movimento. Hoje faz cinquenta anos a última vez que a vi, naquela despedida sem olhares, sem palavras. Sem um último olhar de esperança, da saudade dos nossos vinte anos de amizade.
***
Eles policiavam a minha alma como falcões. Não deixavam escapar nada, absolutamente nada. Eles sabiam onde estava o meu medo, a minha angústia. Conheciam-me melhor, que eu me conheço.
Eles enterravam o horror em mim. O tédio. A dor.
Transformaram a minha alma num cemitério. Na minha alma apodrecia a memória. Lá, jazia a lembrança de Erdna, e da mulher de cabelos cor de cobre, e jazia ainda, a lembrança de um Deus que me traiu.
Eles eram o medo de me lembrar de tudo. Viviam dentro de mim e de todos nós. Os anjos tinham um cemitério na alma. Nós éramos cemitérios vivos. Nas nossas almas havia a memoria, a lembrança, não do que fomos, mas do que nos aconteceu.
O medo de me lembrar falou-me, fez-me chorar sem lágrimas. Falou-me de Erdna, de Deus e da mulher. Falou-me dos trezentos anos da minha existência. Fez-me chorar.
No horizonte, a linha que separa o dia da noite chamava-me e eu lembrava-me daquele grito e abria os olhos para vê-la. A sombra branca da lua a se despedir do sol num choro impossível, numa angústia de nunca estarem juntos. Eu chorava. A sombra branca da lua chorava. Distante de nós, Deus chorava. A lembrança de me lembrar sorria. Eles estavam na nossa alma, policiavam-nos como falcões, nós éramos anjos caídos, traídos por Deus.
***
Com a rosa, caíra a lágrima morna. A terra cobria agora aquela madeira escura e bela, como o fechar dos olhos antes da morte, como a luz que desaparece quando fechamos os olhos.
Era inverno. O inverno mais frio que eu vivera. A chuva grossa caía sobre as folhas secas, no chão triste, que conhecia tão bem, como sabia que era inverno. O inverno mais frio que vivera ate então.
Eu era pequeno, muito pequeno. Pelo menos era o que eu pensava, quando tive que crescer. Sempre quis ser criança, queria conquistar o mundo, tinha sonhos e era triste quando tinha de ser. Ela, a minha melhor amiga, de olhos tristes olhava-me quando chovia e eu não podia sair. Lá fora, o mundo era mais pequeno que a minha, antiga, pequena palma da mão. Ela era minha amiga. Amava-me, ficava doente quando queria que eu a tratasse e tratava de mim quando eu ficava doente. Chorava quando eu chorava. Sentia alegria quando me via chegar para ela. Ficou triste quando não lhe dai os parabéns, no dia 12 de Janeiro, era o seu aniversário. Nesse ano em que me esqueci. Esqueci-me de dar os parabéns a uma verdadeira amiga. Nessa noite ela sentou-se na beira da cama. Eu estava debaixo dos lençóis e do cobertor. A noite era fria e a chuva grossa caía lá fora sobre as folhas secas no chão que conhecia tão bem como sabia que era inverno. Ela olhou-me. Sentada na beira da cama, junto aos meus pés, ela olhou-me, sem dizer qualquer palavra. Quando fixei os seus olhos, vi uma lágrima triste a cair-lhe do olho. Limpei-lhe aquela lágrima morna e chorei. Dei-lhe os parabéns e continuei a chorar. Tinha-me esquecido do seu aniversário. O aniversário da melhor amiga. Enquanto chorava, ela veio para mim e tocou-me com o seu nariz na minha cara. Fazia sempre aquilo quando eu chorava, depois deitou-se a meu lado e chorou. Chorava quando eu chorava. Eu soube o que queria dizer, mesmo sem que ela disse-se uma palavra que fosse. Ela não gostava de me ver triste, não gostava de me ver chorar.
Erdna, era esse o seu nome. Uma verdadeira amiga, os seus olhos azuis como pérolas que brilhavam mais quando estava alegre e ofuscavam quando estava triste. Quando ficou doente eu não dormi, fiquei a seu lado duas semanas, chorando num soluço silencioso. Ela chorava comigo e dizia-me que ia ficar boa, e que íamos passear sob a chuva grossa e passaríamos sobre as folhas secas. Eu chorava, ela chorava e entre nós nunca uma palavra foi dita. Éramos silenciosos, o silêncio esteve sempre presente entre nós. Ela era um anjo silencioso. Uma amiga.
Quando voltou para casa, eu saí para a rua e caminhei com ela até o sol nascer, ela não se cansou até eu me cansar. Sob a chuva grossa, sobre as folhas secas, nós caminhamos até o sol nascer.
Eu fiquei doente, e ela fez o mesmo que havia feito por ela. Ficou noite e dia acordada a meu lado, e chorava quando eu chorava e ficava feliz quando eu ria para ela. Deitava-se a meu lado e beijava-me na face antes de eu adormecer.
Os anos passaram, eu envelheci. Ela envelheceu. Ela fala comigo sem dizer nenhuma palavra. Era inverno. O inverno mais frio que eu vivera ate então. Ela tinha vinte anos, eu tinha vinte anos. Nós falávamos. Eu dizia-lhe que íamos caminhar sob a chuva grossa, sobre as folhas secas, e ela não respondia, em vez disso chorava. E eu chorava com ela. Naquele dia ela foi embora. Sob o ultimo raio de luz, naquela linha fina que separa o dia da noite. Ela foi embora. Sem dizer uma única palavra que fosse. Eu segui o seu movimento. Ela não olhou. Ela partiu e eu nunca mais a vi, como a luz que desaparece, quando fechei os olhos, antes de ver a minha verdadeira amiga pela última vez, com a mesma velocidade de um piscar de olhos.
Hoje é inverno. A chuva grossa cai sobre as folhas secas no caminho. Eu estou triste, a casa está triste. Eu choro, ela já não chora. Eu choro sozinho. Irei lembrar-me eternamente da única verdadeira amiga que tive em toda a minha vida. Erdna, de olhos azuis, que chorava quando eu chorava e ficava triste quando eu estava triste, era uma cadela, que viveu vinte anos comigo.
***
Venenos, ódios na nossa alma. Acima de dos céus e abaixo de nós…dentro de nós vive o veneno…nós somos o veneno.
Corria nas nossas veias, o sangue feito em areia e arranhava os nossos órgãos. O veneno fazia arder esses rasgões nos nossos órgãos. O veneno somos nós.
O medo existia em nós, quando éramos novos, muito novos. Com aquela idade um simples “não” bastava para impor o medo em nós e o veneno corria e misturava-se com ele. Nessa hora, o medo e o veneno eram um só e corriam no nosso organismo.
Os séculos passaram e o medo e o veneno eram os mesmos. Nós somos os mesmos. Não modificamos a nossa existência, porque o medo e o veneno não nos alteraram.
O sangue transformado em areia…o medo era o veneno…tu és o antídoto.
Corriam lentamente as minhas lágrimas frias. A rua era um vazio. Quando nos cruzamos naquela noite escura, vazia. Tudo era nada, não tinha importância. O veneno correu o nosso corpo. No horizonte, jaziam os anjos, que choravam as mesmas lágrimas que eu. A dor. O medo. O veneno.
As asas rasgadas, daqueles anjos que jaziam no horizonte, tinham a mesma força da luz da lua, da lua pálida, que rasgava a noite. Num feixe de luz lunar, pálida, branca, na sombra desse raio, eu vi a tua face. O teu cabelo cor de cobre, que te cobria os ombros e se espalhavam na outra metade da tua cara. Os teus olhos, de cor pálida, como a cor da luz da lua, encontravam os meus. Nesse momento, o mundo era infinito. A noite era infinita. Soube que eras o veneno. O meu infinito veneno.
O dia nasceu e no comboio os homens não tinham olhos, não tinham pernas, nem almas. Eu era um homem. Fechei os olhos e adormeci. Ao acordar, não havia homens. Uma carruagem vazia, e ela sentada na bancada da frente, a fitar o vazio. Sabia que nunca havia estado ali antes, que tudo o que escrevi tinha sido um sonho. As lágrimas, os homens, o sangue transformado em areia, tudo tinha sido um sonho. Em cima da mesa a caneta desmaiava sobre o bloco de notas. Ela estava encostada a mim e dormia com a sua cabeça descansada no meu ombro. Lá fora, a chuva caía e as lágrimas de Deus misturavam-se com ela. Eu vi o nascer do sol e adormeci.
***
A sombra branca que cobri os seus cabelos era a mesma que tinha lua. A lua era infinita. De madrugada, na escuridão tudo é infinito. Eu era infinito quando vi a lua maior que o céu, o céu negro, a lua branca com suas sombras brancas.
O som aborrecido do comboio mantinha-se. Era de madrugada. O som era infinito. Eu era infinito dentro daquele comboio infinito. Aquele soluço mecânico aborrecia-me. Há minha frente, um bloco de notas, no qual escrevia o meu novo livro, uma garrafa de uísque qualquer, um copo com gelo e dois maços de tabaco. Eu, o comboio, a madrugada. O som aborrecido dos motores, quando sem olhar, eu sabia que ela tinha chegado. Eu não olhei, em vez disso, comecei a escrever o meu novo livro:”Quando o sol bebeu a lua eu transformei-me. O mundo transformou-se, tornou-se numa eterna noite, porque a noite engoliu o sol.” Era assim que começava. Quando levantei os olhos do papel, em busca de um cigarro, vi-a a meu lado. Os seus cabelos longos eram fios de cor de cobre que lhe cobria os ombros, com um movimento da sua mão, aquela mão fina e elegante, perguntou-me se se podia sentar. O som aborrecido do comboio continuava constante. O movimento da minha cabeça foi suficiente para que ela percebesse que eu queria a sua companhia. A sombra branca nos seus cabelos, a mesma sombra que a lua tem. Sentara-se, não de frente para mim, mas sim a meu lado. Eu segurava o cigarro com uma mão, e com a outra a caneta. Deixei-me ficar, deixei-me ficar a sentir a sua presença. No vidro, as gotas de chuva reclamavam a sua existência e tornavam o som aborrecido dos motores do comboio, ainda mais aborrecido. Notei que os seus olhos, olhavam-me fixamente. Eu cedi e olhei-a nos olhos. Com a naturalidade de um rio a correr para o mar, eu deixei escapar pelos lábios algumas palavras e começamos a falar.
Duas horas depois, o som do comboio era igual. Eu e ela éramos diferentes. Tínhamos a sensação que nos conhecíamos há muito tempo. Essa sensação iria nos perseguir para sempre. A garrafa já estava vazia. Ela estava a meu lado, ou talvez fosse eu quem estivesse a seu lado. Sentia a sua…de repente, algo nos atraiu como uma força magnética e sentimos os nossos lábios. Uma mistura de qualquer coisa, que transborda alegria ou algo parecido com isso. Um instante infinito dentro do infinito.
O sol nascia no horizonte. Ela adormecera a meu lado. A sua cabeça descansava no meu ombro. Eu era uma estátua, imóvel para a não acordar. Ela era um anjo negro, um anjo negro que dormia junto a mim. A sua beleza era inconfundível, os seus cabelos, fios de cobre, que estavam agora espalhados na sua face. Os seus lábios. Eu via o nascer do sol. Depois da linha que separa a noite do dia desaparecer, eu adormeci. Quando acordei o sol já se ponha no horizonte, e a linha que separa o dia da noite chamava-me e eu acordei para vê-la desaparecer. Eu vivia na noite. Ela estava a meu lado e olhava-me firmemente e vi que nos seus olhos havia cansaço. Nas suas mãos uma garrafa de uísque e dois copos. Ela esperava que deixa-se escapar mais alguma palavra…mas isso não aconteceu. Abri o meu bloco de notas e escrevi: o sol já se pôs., ela sorriu e beijou-me como só os anjos beijam, com ternura, com afecto. Com amor, eu sabia que ela perseguir-me-ia para sempre.
Os anos passaram e ela adormecia no meu ombro e eu via o nascer do sol.
Passaram os anos e o som aborrecido dos motores do comboio eram iguais. A sombra branca era igual.
Eu amava-a. Ela amava-me. Tudo pode acontecer quando deixamos escapar algumas certas palavras. Tudo pode acontecer no comboio infinito.
A garrafa está vazia. Ela está a meu lado e ama-me. O meu cigarro morre no cinzeiro e eu amo-a. O bloco de notas está aberto com a caneta sobre ele. Eu amo-a e ela ama-me.
O meu livro, no bloco de notas, está acabado, no fim da folha lê-se: no comboio infinito, ela está a meu lado e nós nos amamos, mas sabemos que somos almas. Eu olho para a frente e Deus está a chorar, ela dorme no meu ombro, eu esboço um sorriso para ele e digo-lhe que:
-No acidente de 1960, só houve duas vítimas, os dois únicos passageiros daquela viagem fatídica. Ele e ela não são vítimas, mas sim as suas almas e amam-se.

Ardiam as minhas sombras, naquela sombra que era a noite, sob o luar gélido da lua. A lua existia dentro de mim. Eu era a noite, a sua glória existia dentro da minha alma. Eu era Deus, e era novo. Os homens haviam me criado, e eu era o que eles queriam. Eu era Deus e não era nada.
Eu era uma fábula, uma lua. Uma noite. A minha alma era um misto de crenças, de desejos. Mas tu, não desejavas nada. Eu era novo, tu eras novo e eu não compreendia o que tua não querias. Tu nunca falas-te comigo. Eu sou Deus e não sei o que faço.
Deixava-me ficar sentado na esquina da vida, da dobra que se cruza com a morte e via os homens passar. Eu não sabia o que fazia porque era novo. Os homens choravam ao dobrar a esquina e eu olhava-os e chorava com eles. Eu não salvava as suas almas. Eu era Deus e não sabia o que fazia.
Quando passas-te, olhaste-me…não choraste, nem sorriste. Olhaste só para mim e eu agarrei a tua mão. Não salvei a tua alma porque não sabia como o fazer. Não te enviei para o paraíso, porque eu era novo e ainda não o tinha construído, em vez disso, enviei a tua alma para aquele comboio de onde tinhas vindo. Os teus cabelos cor de cobre, espalharam-se e eu vi a tua cara. Apaixonei-me.
Um segundo aqui é igual a um ano de vida.
Um segundo depois, ele passou. Eu agarrei no seu braço e transformei-o em Deus. Eu fui enviado para o comboio. Nós éramos almas, éramos anjos. Nós nunca nos tínhamos falado. Acordei no comboio, com a tua cabeça encostada ao meu ombro e vi o por do sol.

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terça-feira, agosto 19, 2008 - 14:54

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Comentários

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Re: Ao meu melhor amigo

A amizade é tudo, ter um amigo é ter tudo…

:-)

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Re: Ao meu melhor amigo

prezado andré
obrigado por teres visitado minha página
li alguns dos teus excelentes textos que me fizeram lembrar os poemas simbolistas em prosa
podes encontrar mais textos meus em usina de letras/autores/academia passo-fundense de letras
um grande e fraterno abraço do
paulo monteiro

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