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Ecrã

Ecrã

Sou uma pilha de vidros quebrados e espalhados por todos os locais em que vagueei. Em cada um deles está um reflexo que me pertence. Sei de cor o ponto em que descansa cada um dos fragmentos e tenho esta estranha obsessão de lhes passar por cima e dispersá-los ainda mais.

Às vezes, a chuva corre-me na face e solidifica com um qualquer sopro frio, já depois de ter escorrido pelo meu corpo, fixando-se mesmo debaixo dos meus pés. Permaneço aí, num desespero congelado de querer (sem poder) fugir. Outras vezes, uma fortuita borboleta faz incidir em mim o seu calor através de raios de fogo oblíquos e eu posso-me mover enfim. No entanto, de livre iniciativa, viciado na efémera febre da borboleta e facilmente persuadido pela nostalgia que adoça a chuva passada, decido-me pela estadia. O frio volta e o calor sucede-o, o escultor retorna e o calafrio vem de novo. Outra vez, outra vez e outra vez…

Aí eu percebo que sou a arte da não locomoção. Todo o vidro que estilhaço está em mim sob a forma de cicatrizes. Tenho-me pisado há estações sem conta e o meu reflexo é um gémeo omnipresente, por muito que distorcido e vago de mais para me ser captável. Vivo tempos sem bússola, guia-me a procura de uma. O passado, um meio que se torna fim, quando nele busco um presente com futuro.

Como um aspirante a cosmonauta, a maturidade autoproclamada com que observo o recinto em que me habito é um quase nada num todo que ignoro e imagino inocente e ingénuo. Tudo o que sei é o solo que piso no momento. Sem a tímida leveza de consciência de correr em círculos, quando tudo o que gira é a minha cabeça e os meus pés estão bem enterrados no velho planeta pessoal do costume.

Duas forças: temporal e espacial. Escapam-me ao controlo pelo intervalo entre os dedos de uma mão que até está fechada e logo surge um pânico adjacente. O tempo acelera-me, o espaço trava-me, o tempo engole-me como água, o espaço mastiga-me como pastilha elástica.

Cruzamento e encontro? Ambos me aniquilam em arritmias existenciais e fico um vaivém hesitante perante um par de dimensões em batida dessincronizada. Jogam-me a um claustrofóbico gato e rato mesclado num quem é quem. Desorientação óbvia… Pista única: os dois tropeçam em vidros negros ou rosas. É esse o invariável clímax das sucessivas histórias narradas.

Deitado na mesma cama de sempre, todas as noites fecho os olhos: pelo pára-brisas de um carro, avisto um enorme retrovisor do tamanho de uma vida e um amontoado de recordações nascidas num diminuto lugar, o lugar habitual. Esse vidro em particular não existe. É este ego cristalino imune ao que não é a visão do ontem no horizonte, cego à ínfima periferia do túnel solitário em que arquitectou a destruição... Os verdadeiros vidros, esses, juntos, são apenas a soma das partes de um espelho a preto e branco da idade de quem o criou. São as melodias compostas e as letras escritas que há muito quero para trás das costas. Posso viver com elas, só não quero viver delas. 

(08-05-2011)

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quinta-feira, agosto 15, 2013 - 19:42

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Fran Silveira

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