Entre Margens

Envolver-se com ele foi mais um dos mergulhos de cabeça perdida no vazio. Pensava ter-se apaixonado, por uma ave ferida que precisava de tratamento e carinho. Realmente o Diabo assume muitas formas. Aquele passarinho ferido não era mais que um abutre, sem desprestígio para os abutres. Toxicodependente de longa duração, daqueles que levam tudo à frente sem escrúpulos.
Sim ela considerava-se uma toxicodependente com escrúpulos. Passara fome, grandes ressacas dolorosas, suadas e agonizantes, mas o fundo do poço para ela tinha um limite acima de todos os valores morais. E, para além de esquemas para arranjar mais algum dinheiro, nunca se prostituiu, nunca roubou e sempre que se achava com forças arranjava um emprego, que acabava sempre por perder. Tinha de faltar ao serviço se não houvesse dinheiro para a droga. Ninguém vai trabalhar a ressacar.
O diabo do abutre ferido não era assim de valores.
Quatorze anos de vício, milhares de euros gastos em clínicas particulares, pagos por uns pais que nunca perderam a esperança. Esperança que um dia acaba-se a violência naquele lar, se é que se podia chamar lar àquele apartamento num primeiro andar em Benfica, semi-destruído pelos furacões das ressacas, ou caprichos de consumir. Onde as pulgas não eram fruto de falta de higiene daquela pobre mãe, já à dezassete anos medicada para a esquizofrenia, pois apesar da ausência de espírito e da catatonia, o amor pela família fazia-a preocupar-se com o estado da casa. Bem como aquele cansado e agredido pai, que tudo fazia para tentar minimizar os estragos daquelas vidas tão mal fadadas. As pulgas eram trazidas diariamente, juntamente com cantos de sacos de plástico queimados na ponta, durante as visitas aos bairros da Cova da Moura, do 1ª de Maio e das Portas de Benfica. Todos os dias ele trazia novas pulgas para conhecer as pulgas que conseguiram sobreviver às desinfecções diárias que o pai fazia, e assim nasciam mais pulgas. Estas já nascidas e criadas na zona de classe média de Benfica. Pulgas finas.