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O Mercado das Sombras (Excerto)

O Mercado das Sombras
1941

Uma criança sempre fantasia com a busca de mistérios, com o veneno da intriga a fervilhar-lhe no sangue num Mundo de faz-de-conta e pensamentos mágicos onde o pesadelo da existência se esfuma entre irrealidades. Uma criança está amaldiçoada a desejar esse momento como a fuga de um destino a que a alma já se condenou.

Jamais esquecerei aquele início de noite em que o meu pai me levou ao Mercado das Sombras. Desfivelavam-se os primeiros dias de Outono de 1941 e caminhávamos nas ruas da vila da Batalha entre neblinas e o cobre dos candeeiros. O céu pestanejava como uma pálpebra de penumbra e um vapor húmido boiava docemente pela brisa.
- Onde vamos pai? – Disparei.
- Paciência Bárbara…paciência – Retribuiu com um sorriso sombrio e um travo fanhoso de um cachimbo carcomido.

Desde muito nova que me havia aclimado aos fedores fortes da fruta e do alcatrão dos cachimbos, dos charutos e cigarrilhas que prostituíam o soalho da Tabacaria Assis e as epidermes de quem lá vadiava. Foi a partir do dia em que a minha mãe nos deixou que as mortalhas e os centavos me viram diariamente crescer e esculpir formas no corpo. Do pouco que me recordo, essa senhora minha mãe acalentava a ideia de ser merecedora de um palco onde podia representar e brilhar, como uma diva de cinema que colecciona aplausos e dedicatórias de amor. Não foi de estranhar que se entregasse aos desenganos que um pobre realizador, que nem dinheiro para um cachimbo tinha, lhe arremessou quando transitou aqui pela vila. Partiram numa terça à noite. Nos meses que se seguiram, colei-me desmerecidamente à janela do meu quarto, aguardando que de entre as brumas visse somente um esboço das mãos que acariciavam mansamente os meus cabelos ou o meu corpo quando me lavava. O meu pai reduziu-se a um vulto de raiva e lágrimas que ocasionalmente me alimentava. Tornou-se um homem alto e escanzelado, amargurado e vergado aos açoites da memória de uma mulher que o havia esquecido e abandonado com uma filha que não sabia cuidar. Ao aconchegar-me nos lençóis dava-me um beijo na testa e saía para a sala onde o sentia choramingar durante horas a fio.

Seguimos por uma rua estreita, uma fímbria de seixos e musgo mergulhada numa bruma de azul petróleo onde o olhar se arruinava. O horizonte desenhava-se lentamente como um arabesco de luz onde uma silhueta começava a ganhar forma. Senti começar a patinar sobre uma camada de ardósia e orvalho, e quando dei por mim já estava de cu no chão e de rosto maquilhado de rubor.
- Estás bem? – Questionou-me com um misto de preocupação e troça.

Esbocei um largo sorriso e rimo-nos aparvalhadamente. Uma leve brisa fez levitar a névoa. Ao empinar o corpo besuntado de água, embasbaquei ao ver-me defronte daquele monstro que se perfilava como um gigante de trevas, o imponente Mosteiro. Reparei que o meu pai sorria ao ver-me boquiaberta. Continuámos a caminhar, cabriolando ao redor daquela barbaridade de beleza e goticismo que reduzia o céu a um fiapo de nuvens negras, até que estacámos diante de uma enorme porta de carvalho e mestria que os anos e as chuvas tinham enfarruscado. O meu pai esmurrou-a três vezes.
- Isso é algum tipo de código pai? – Interroguei-o com um brilho nos olhos.
- Há muitas gerações que é utilizado, …bate-se na porta e alguém vem abri-la – Fulminou tentando encapotar um sorriso que ameaçava estourar.
- Parvo!

Um silêncio cortante fez-se sentir e reparei que tremia de frio e desassossego. Após uns eternos segundos começaram-se a ouvir uns passos que mais pareciam um preguiçoso tamborilar de chumbo. Quando estes cessaram, a porta iniciou uma cerimónia de chinfrim que só terminou com o aparecimento de uma figura minúscula e roliça. Ostentava uma vasta penugem esguedelhada sobre os beiços onde a última refeição ainda se aferrava com descoco.
- Sr. Gustavo! Tem a minha paga? – Inquiriu o porteiro num tom de recato e chafurdice.
- Como prometido – Retribuiu o meu pai com indiferença e duas caixas de charutos que seriam o nosso bilhete de entrada.
- Nesse caso…bem-vindos ao Panteão de D. Duarte.

Entrara num assombroso corpo octogonal de rendilhados e janelões que depuravam a luz uma fímbria purpurina, como se tivesse mergulhado numa vaga de groselha que espumava sob as paredes. Sete capelas desfloravam-se para o recinto através de gigantescos arcos quebrados por onde se distinguiam sete sarcófagos e uma bruma de mistério, como se fosse um portal entre a vida e a morte. Senti uma lâmina de frio cair-me sobre o pescoço e percorrer-me a espinha. Olhei para cima e vi que o tecto era apenas uma miragem de negrume que ameaçava desabar em pranto.
- Vamos! Por aqui – Arrotou o porteiro.

Invadimos uma das capelas onde D. Leonor jazia sob uma abóbada nervurada que mais se assemelhava a uma grinalda de veias e sombras. Vi-o pousar as patas no mausoléu e fazê-lo deslizar sobre o chão, destapando uma escadaria e um hálito a cera queimada. Iniciámos a descida por aquele encaracolado de degraus onde um anão se sentiria enorme. Um cemitério de velas recostava-se às paredes caiadas de teias de aranha e, de quando em vez, passávamos por uma ou outra moribunda que alumiava o percurso. Vislumbrei no âmago da terra uma bolha de ouro candente para a qual nos dirigíamos. Aos poucos fomos engolidos por aquela aura de brilho que uma meiga bafagem sacudia.
- Ei-lo, o Mercado das Sombras! – Anunciou o javardo.

As paredes eram laminadas de xisto e musgo que se mesclavam com um aglomerado de lágrimas negras que formavam um espelho de água morta, como se as trevas se tivessem liquefeito e irrompessem paulatinamente. O chão estava coberto por uma neblina prateada que me cortava os pés e os tornozelos, dando a sensação que flutuávamos. Archotes de lua dourada suspendiam-se do que supus ser um tecto, apesar de não o ver. Haviam bancadas dispersas pelo horizonte, onde acenavam as mais diversas bugigangas e pequenas preciosidades com o seu reluzir de cobiça. Distinguiam-se alguns vultos a deambular de banca em banca, com túnicas e capuzes ardósia que os reduziam à sombra das suas identidades.
- Pai…é a coisa mais fantástica que já vi na vida.
- Eu sei Bárbara…eu sei.

Senti que a vida valeria a pena só por aquele vislumbre que despontava como um sonho.
- Este é um mercado muito especial – Enfatizou o porteiro num cântico roufenho – Trocam-se os maiores bens que algumas sombras por aqui deixaram. Passados sem rosto que desejaram que os seus tesouros perpetuassem para além deles, para que alguém os pegasse no porvir e devolvesse a sua grandiosidade ao Mundo – Prosseguiu como uma harpa bem afinada – Aqui não se liga ao valor material do que é trocado, apenas ao valor sentimental. E lembre-se, este lugar é um segredo maravilhoso apenas porque os que por aqui passaram conseguiram manter-se de boquinha fechada. Estamos entendidos? - Elevou a voz em tom de ameaça.
- Perfeitamente – Respondi prontamente, ludibriada pelo apetite do olhar.
- Trouxeste o que te pedi? – Inquiriu-me o velho.
- Sim, a cigarreira…agora percebo.

O caos sempre foi um alimento inebriante. Quando deflagrou a Segunda Guerra Mundial, muitos foram os espíritos que acusaram o peso da pólvora e do frémito de lhes roubar a razão, tentando justificar desse modo a sua predisposição para a perversidade. Uma onda de assaltos atormentava a vila, e a Tabacaria Assis foi apenas uma das muitas contempladas. Lembro de assistir, dos meus nove anos de idade, àquele milagre. O sol esbraseava as ruas como uma torradeira carmesim e no ar pairava uma mística de suor e sovaco que pingava dos enchidos das gentes que se escabulhavam. O tapete da tabacaria ressoou ao ser espezinhado. Sobre si, ossificava uma linguiça de trapos e fome que agoirava infortúnio de cada entranha. Os seus olhos eram um abismo de gema e sangue raiado que limavam cada trecho do balcão. O meu pai subira ao segundo andar onde residíamos para preparar o almoço, deixando-me momentaneamente sob a custódia da nicotina. O meu estômago rodopiou sobre si quando vi o bandalho sacar de um revólver. Senti que sugava a eternidade num vórtice de pânico, deixando-me sem espaço nem para um mísero fôlego. O canudo da minha sentença explodiu com o aperto daqueles dedos tão trémulos quanto os meus. Relembro aquele meteoro de prata a sobrevoar sobre a tabacaria e a rasgar aquela atmosfera de despedida. No instante em que assumi que o futuro já me teria sido roubado, um tinido penetrante ribombou nos meus ouvido como uma valente bofetada, com a promessa de ficar para sempre gravado na minha memória. Não me lembro do meu pai voar das escadas e aninhar-me nos seus braços, nem tão-pouco de ver aquele efémero se evadir pelas ruas do ressentimento. Sei porque me contaram.

Tirei a cigarreira da minha bolsa de farrapo e vi nela o sacrifício de me ter salvo, um coto de bala queimada que repousava numa lápide de prata e alcatrão. Enveredei-a quase tão alto quanto a ansiedade que esperneava nos meus olhos e embarquei na procura que me levaria ao brando improviso de um sonho. Optei que fosse a sina a levar-me livremente até ao poente do que apenas augurava. Ia sentindo a aura de centenas de tesouros a mendigar por um pouco de vida. Senti que estava mergulhada num plagiado de fantasias e platinas. Anéis, pulseiras, relógios e outras tantas estrelas cintilavam no seu firmamento de bordado púrpura, até mesmo uma lamparina vi, sem que nenhuma me prometesse invejar o céu. O meu pai embrenhava-se numa colecção de charretes douradas a uma boa dezena de metros atrás.
- Pssstt…menina – Uma voz perdida – Aqui.

Uma silhueta encapuzada me acenava disfarçadamente. Atendi receosamente, mas intrigada.
- Tenho aqui o que procura – Indicou-me. Mas de onde viria aquela voz meiga e misteriosa? Não lhe distinguia nem boca nem rosto, apenas o vazio do negrume.

Apesar do medo, aproximei-me com o mesmo salivar de paixão e desassossego das manhãs de Natal. Num gesto limpo e perfeito, retirou de um monte de tralha, que de tão reles não me ficou na lembrança, um saco preto de onde cuspia um halo de alvura como o da neve imaculada. O coração arriava o seu entusiasmo no peito e circunscrevia o fôlego a um ténue vácuo que se desprendia dos lábios. Estendi o braço e mergulhei-o na labareda do enigma que me alcovitava até ao âmago. O primeiro toque surgiu com a escolta de um formigueiro que se estendeu até aos nós dos dedos e, como uma grua de ânsia, guindei o seu palpo alisado até ao regalo da vista. Um pingente de um delicado anjo, lapidado em tons de prata e anil, intrometeu-se docemente na alma com a ousadia de quem sabe que esbanja assombro. As suas asas, cãs e divinas, mergulhavam no firmamento dos meus olhos esverdeados, mimoseando-me as pálpebras com salpicos de brilhantismo. Soube que me pertencia e sorri.
- Bárbara! Já encontraste – Um brado à distância.

Enxerguei o meu pai entre o brilho e a noite, ainda estupefacta, sem que conseguisse responder. Acenei com a cabeça e os olhos. Quando me alinhei de novo, nem sinal do mercador ou tão pouco do odor do seu rasto. Nesse instante soube que a razão me havia atraiçoado e, acomodando o anjo ao pescoço, prometi a mim mesma que só o tiraria quando o corpo me despisse para o céu ou mesmo para o inferno.

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quarta-feira, dezembro 23, 2009 - 19:43

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jopeman

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Comentários

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Re: O Mercado das Sombras (Excerto)

estou a gostar muito, ainda não li tudo mas prendeu-me a atenção abraço

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Re: O Mercado das Sombras (Excerto)

João,

Muito bem escrito.
Um Romance que irá dar que falar.

Parabéns

Feliz Natal

Beijos Doces

Matilde D'ônix

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