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O segundo Milagre - Capítulo V

V

Ah. Que bem se está aqui!
Sempre que atravesso os portões centenários de ferro-forjado apodrecendo do Parque D. Carlos I experiencio todo o romantismo da época em que foi construído nos finais do século XIX. É como se as simples vedações de arbustos fossem as mais potentes e isolantes painéis de protecção capazes de criam uma atmosfera cheia de mil cores e odores variadíssimos numa terra ainda não envenenada e por industrializar.
Existe em cada avenida e cada ruazinha deste parque uma qualquer substância reconfortante que aquece a alma de quem vê o mundo como um local cada vez mais inóspito, frio e cruel. A cada esquina uma flor ou árvore vibrando na presença de uma estátua ou escultura saudosa enche o nosso coração de esperança de um mundo esquecido onde o mais importante era os sentimentos e não os valores materiais.
Pode quase visualizar-se a presença centenária dos doentes do termal fazendo o seu “passeio da copa”, convalescendo, andando vagarosamente sob esta manta de copas de árvores cerrada exalando frescura de uma forma quase extraordinariamente indizível.
Separando-se do mundo exterior por um interminável e periférico muro com um gradeado feito de ferro forjado colocado verticalmente e separado por 20cm de distância com os seus espigões pontiagudos ameaçando como lanças, o parque vive uma própria e quase primitiva atmosfera anti-stress procurada por tudo quanto é vivo e precisa de um pouco de paz.
Cheguei. Às vezes sinto que me perco mentalmente quando entro deste parque como se a minha mente penetrasse dentro de um qualquer mundo paralelo onde tudo é perfeito, uma espécie de paraíso, se é que isso existe num universo aparte fora do conceito de paraíso-ilha-com agua-azul-sentado-dabaixo-de-um-coqueiro-a-beber-um-coctail-tropical.
Tal como visualizara anteriormente num déjà vu antecipado, aqui estou sentado debaixo de uma linda magnólia em flor num banco de jardim romântico de costas para a casa dos barcos e olhando para o lago e para a estátua da Dama do lago que me parece fitar à distância. Um pouco mais ao meu lado, na direcção do Pópulos os velhotes ocupam-se em por a sua tertúlia em dia, uma vez fartos da cartada. Os casalinhos passam apaixonados e estou já inevitavelmente rodeado por pombos esperando uma recompensa como se a sua presença fosse razão suficiente para a mesma. E era-o. Hoje não trouxe pão digo-lhes com uma frase dita sem som e livre de palavras feita só de um sorriso. De seguida fecho os olhos e encho os pulmões com todo o ar que consegui inspirar e as imagens que me rodeiam está lá também noutro mundo com toda a sua beleza, formas, textura e odores.
Abro os olhos e coloco o jornal e o livro sob tábua de madeira pousando suavemente os braços sobre as pernas deixando estar ali lânguida e preguiçosamente bebendo do néctar da vida. À minha frente, dentro do lago, passa um casal de chineses ou japoneses sorrindo quase exageradamente, remando com cara de quem está a conquistar os mares tenebrosos num jeito desengonçado de marinheiros de água doce. Estão por todo lado estes asiáticos. Um pouco mais à frente os gansos e os patos-reais brigam pelo local ideal para fazer o seu ninho e claro está que mesmo em maioria a abissal diferença de tamanho já ditou quem ocupa os melhores apartamentos no meio dos juncos enquanto mais ao lado outros alheios à disputa remexem palhinhas no chão, lavam e dão volume às suas penas numa atitude de cabeleireiro que sabe fazer o seu trabalho. A passarada passa atarefada cortando o vento mais fresquinho da tarde e a mosquitada criam um véu por cima das águas verdes-turvas do lago alaranjadas aqui e ali por uns quantos peixes que vem à tona na perspectiva de um snack ligeiro. Um coaxar próximo seguido de um chapinhar na água denuncia uma rã voltando para a liquidez sombria das sombras das árvores que fazem desenhos estremecidos na lezíria do lago. Reagindo ao impacto de onda vibratório um grupo de carpas nadam até ao local de impacto investigando na esperança de comida fácil, talvez um pedacinho de pão atirado por algum transeunte. Mas nada é o que encontram.
Diz-se por aí na boca pela boca do povo, num desses inumeráveis mitos urbanos que, tantos os peixes como os pombos do parque estão proibidos de aceitar ofertas de quem passa, ou que quem passa está proibido de alimentar os animais. Tantos uns como outros temem que se o fizerem aparecerá o guarda do parque multando uns e castigando os outros…buuh.
Dizem os entendidos que é mau viciar os animais nesse tipo de atitude de mendigo que procura a sopa dos pobres quentinha no frio da noite porque assim vão perdendo o seu instinto natural de busca de alimento e dessa forma tornando-se bichos ociosos que se limitam a esperar que alguém lhes atire um pouco de pão ou milho ou, que é também uma forma de controlar s sua natalidade; dar-lhe pouca comida controla o nascimento? Whatever.
É o que se pode chamar de reflexo condicionado (de Pavlov).
- Talvez assim também seja melhor e mais aconselhável não contribuir com alimentos nas campanhas do Banco Alimentar ou de tantas outras organizações sem fins lucrativos que frequentemente encontramos às portas dos supermercados; por causa dos reflexos condicionados; claro está.
Continuando e deixando os bichos de lado.
Vejo também reflectido sob o espelho do lago, ao lado das imagens dos plátanos e das ameixeiras bravas, os agora decrépitos e arruinados pavilhões do parque elevando-se para o céu em toda a sua altura majestosa ameaçando o esquecimento total. Edifícios que serviram outrora de apoio às termas, mais tarde como pouco falado local de degredo de nazis ou judeus ou quem sabe de ambos. Uma parte foi ainda ocupada pela Liga dos combatentes. Outra parte como Biblioteca Municipal e ainda outra virada a norte ao que falta cair das paredes da antiga Casa da Cultura como Pólo da Escola Superior de Educação de Leiria e por fim como Escola Técnica Empresarial do Oeste. As desgastadas placas de pedra de mármore ou moleanos – ou outra pedra qualquer, tanto faz - lembram a quem passa o que por ali já existiu morrendo aparentemente para sempre. – Estamos cá para ver. - E se olharmos melhor conseguiremos, nas mais sumidas e enegrecidas placas de pedra comidas pelo passar dos anos, o dizer imponente: PATRIMÓNIO DO ESTADO.
Agora felizes estão os pombos em tão espaçosa mansão.
Sou invadido por todas estas imagens e odores, por todos estes pensamentos envoltos numa bruma de sons naturais que me embalam como a uma criança cansada na hora de dormir a sua sesta.
No limite da clareira feita em redor do lago olho para o céu e feliz posso vê-lo como um amigo de vestindo um belo fato azul vivo estonteante como se de uma cor original e não de uma violada se tratasse. Aqui e ali um pedaço de algodão avança como uma nau levemente por um mar de calor ameno proporcionado pelo deus Sol dando a sensação que salamandras lhe percorrem vagarosamente o fato.
Recosto-me para trás encostando-me o mais confortavelmente que permite a rigidez da dura tábua de madeira do banco romântico que me serve de encosto e deixo-me maravilhar pela beleza do quadro. De seguida adormeço.

Estou no pequeno jardim da minha casa em pé encostado ao muro de metro que serve de estrema à estrada que passa em frente. É meia-noite de 14 para 15 de Maio de um ano qualquer. Estou a olhar para o céu estrelado sobre a cidade das Caldas à espera de qualquer coisa. Não consigo ver-me da mente para baixo e sinto apenas que aqui estou. É estranho estar aqui à noite a olhar o denso escuro quando podia fazê-lo durante o dia e desfrutar da vista fotogénica que este local tem. Se olhar um pouco para a direita posso avistar a não mais de 13 km em linha recta as dunas de Salir do Porto e a Baía de São Martinho perdendo-se a imagem no farol da aberta de na caída quebrada que esconde a praia de Gralha. A Nazaré também lá esta ao fundo mas o nevoeiro não deixa perceber a imagem.
Em frente vejo os pinhais e eucaliptais circundando a quinta do negrelho e a pedreira já perto do Nadadouro terminando com o edifício do Green Hill já na bela praia da Foz do Arelho no limite do que a minha vista consegue alcançar perdendo-se por fim no azul do Atlântico onde duas pequenas manchas negras deixam imaginar as ilhotas semi-selvagens das Berlengas e dos Farilhões.
Rodando um pouco mais a cabeça para a esquerda em direcção a sul e continuando no ponto deixado na Foz do Arelho como estivesse a observar a paisagem através de uns binóculos vejo o monte do facho já no lado dos Belgas, Peniche mais longe ainda e percorrendo rapidamente as copas das arvores num movimento de 90º e bato com os olhos no único e imponente Castelo de Óbidos.
Que vista. Bocejo com as mãos apoiadas no muro amis a dormir que acordado. É noite. O que é que eu estou aqui a fazer?
Enquanto divago nisto parece que as estrelas começam a ganhar um brilho especial dando um clarear renovante ao escuro infinito.
Vejo o mar na penumbra e estou já a brincar com os pés na água dentro de uma poça numa quebrada que vai e vem ao sabor das ondas onde pequenos peixinhos e camarões quase invisíveis de tão minúsculos se deixam flutuar ao sabor da ondulação. Mas, agora como um flash estou de novo em frente a minha casa já debruçado em cima do murete rodeado de diversas cores de infinitas cores olhando para o relógio que não tendo no pulso indica 00:15. E de novo a mesma interrogação enquanto coloco o meu olhar rente aos telhados dos prédios da cidade, O que é que estou aqui a fazer?
Ainda antes de alguém me responder a esta questão todo eu saltava para o ar como um boneco saindo despoletado pela pressão de uma mola de dentro de uma caixinha surpresa ao som consecutivo de explosões de fogo-de-artifício. Espirais douradas assobiando em direcção ao céu; bolas das mais variadas cores surgiam de um minúsculo ponto abrindo-se como uma geométrica flor multicolor e ganhando proporções gigantescas até desaparecerem de novo; repuxos em forma de cascatas; outras formas simétricas radiais parecendo dentes de leão cor de ouro polido tão perfeitas que sem dúvida, como diria Pitágoras: - “ Todas as coisas são números.”; e a cada imagem a noite estremecia vibrando com ribombar das explosões precedendo o efeito mágico no céu até que por fim ao som tocante e intervalado de um morteiro o silêncio engoliu o momento e se deu por acabada a comemoração na noite.
Um casal de passava de mão dada pelo parque junto à casa dos barcos e sorri vendo Abílio dar pequenos saltos no banco de jardim como pequenos espasmos de quem está quase a morrer.
Abílio estremecia ligeiramente a cada explosão como se o fogo-de-artifício rebentasse dentro de si mas não acordava. O tempo começava a mudar ligeiramente e anterior céu azul começava como um mar invadido por um derrame de crude a encher-se de nuvens mais carregadas ameaçando talvez uma chuva para breve.
Ainda ao som da última explosão dou por mim de boca aberta numa expressão de admiração de ah-que-bonito no jardim da minha casa e enquanto bocejo pela milionésima vez fecho os olhos e quando os abro sinto-me como sendo levado através de um cabo de fibra óptica numa viagem alucinante até um passado próximo.
Agora estou a dirigir-me para pátio interior da minha casa com a minha avó para tratar de algumas flores delicadas florescendo no final do Inverno, inicio da Primavera. Parecem-me túlipas e é provável que o sejam. Desço feliz, os quatro pequenos degraus que acertam o desnível da cozinha para o logradouro porque vou ao encontro daquilo que mais me realiza, tratar de flores enquanto ouço atrás de mim a voz suave, meiga, terna e cansada da minha querida avó dizer:
- Vai andando filho. A avó já vai. Vou só descansar um bocadinho aqui no banquinho.
Eu continuo descontraído para o meu pequeno paraíso. Um logradouro rectangular com pouco mais de 60m² rodeado por um muro de dois metros de altura caiado-mesclado por reboco caído mostrando o tijolo de burro com que fora feito à direita e ao fundo e barracões de madeira enrugado devido as permanentes mudanças de temperatura lembrando antigas cidades fantasmas de cowboys à esquerda quando se sai da cozinha e em todas as áreas disponíveis de parede estava colocada uma bancada antiga improvisada feita com cinco tijolos de quinze ao baixo distanciados por cada 1,5m dando uma sustentabilidade razoável a dois tabiques de pinho com cerca de 40cm postos lado a lado escondendo gretados e verdes-enegrecidos a sua cor clara e os seus veios comuns debaixo de muitos anos de sol, chuva e terra que sobre eles passaram. Encostada aos barracões que serviam de adegas para guardar material de jardinagem e algumas poeirentas e secas pipas de vinho, assim como antigas pocilgas e currais de gado bovino e caprino ocupadas agora por sarafanos e aranhas e outra bicharada erguia-se uma pequena estufa de pouco mais de 3m de largura por 5m de comprimento cuja estrutura era feita de prumos de eucaliptos revestida por manga-plástica transparente. Um espaço que faz lembrar uma pequena e tosca estufa de flores mas sem tecto na sua totalidade.
Voltando à bancada encostada ao muro da direita e lembrando uma estrada de terra batida cujo separador central é uma faixa de ervas em vez de uma parede em betão, daquelas estradas que vão rareando pelas aldeias sob o jugo do alcatrão, posta paralelamente está colocada outra bancada que ao exemplo das outras estão milimetricamente ocupadas pelo mais variado, quer na forma quer no tamanho, de vasos para ou com flores mediante a época do ano. Na sua maioria os vasos mostravam os seus belos frutos feitos de uma base negra de terra devidamente nutrida com adubos naturais, verdes, tenras e elegantes folhas verdes adornadas com as mais sensuais cores de veludo que só as túlipas possuem.
Do outro lado do quintal onde estava a pequena estufa encontra-se mais uma bancada um pouco mais pequena com outros tantos vasos e floreiras já preparados para plantar as sementes da nova estação entre o espaço que existe depois da estufa até ao portão de madeira das traseiras que dá acesso à serventia lateral. A seguir ao portão e a finalizar o rectângulo do quintal está á direita uma pequena casinha de forno sob um telheiro de lusalite sustentado em velhos barrotes de eucalipto. É necessário descer um pequeno degrau para entrar naqueles esquecidos e enfarruscados 4m² com um pequeno orifício ao fundo denunciando o forno de tijolos de burro que faziam, depois de aquecidos com lenha queimando no seu ventre e à temperatura certa o pão mais saboroso e apetitoso que alguma vez virei a comer.
Como algo intermitente interrompe-se a visão que estava a ter e nada mais que um grande vazio é o que sinto.
Sinto estranhamente que tudo isto não é real mas ao mesmo tempo é como se fosse.
Onde é que eu estou?
Do que é que eu estou à espera?
De onde vim?
Quem sou eu?
Para onde vou?
Será que ainda estou a sonhar?
Será a minha vida apenas um sonho?
Serei eu apenas fruto do meu próprio sonho?
Com um estalar de dedos que desconheço volto de novo ao meu quintal. Penso na minha avó enquanto olho para a casa de forno. Ela já devia ter vindo. Está velhota, coitadinha. Deixa-a a descansar.
Colocada entre a casinha de forno e o portão de madeira estão colocadas 4 coelheiras lembrando os antigos aparadores ou armários de cozinha alentejanos; cada coelheira com duas portas de abrir na vertical e em vez de vidro nas janelas tem rede de arame hexagonal do tamanho de avelãs. Por baixo delas a terá negra com uma forma aconchegante, esburacada e oval mesmo ao lado de um bidão de metal ferrugento em avançado estado de reciclagem esburacado aqui e ali pelo efeito da oxidação permanente denunciam a presença de um cãozinho de estimação que há muito deixara de ali viver. Dentro das coelheiras o feno e as caganitas secos e a desfazer-se pelo tempo misturam-se com incontáveis e poeirentos véus de teias de aranha que também há muito perderam as suas hospedeiras não passando agora de sujos trapos onde nenhum animal faz tenção de alguma vez voltar. Parece que nem os bichos ficam indiferentes ao êxodo rural.
Tudo isto faz parte do meu mundo. Não interessa o seu aspecto porque para mim tudo tem a sua beleza. A diferença está apenas naquilo que vemos e naquilo que conseguimos imaginar. E visto desta maneira, posto o nosso querer voando nas asas de um condor a meio caminho entre o céu e a terra, a beleza não tem fim.
Mesmo quieto, sinto-me como estando de braços abertos girando, girando, abraçando com toda a minha alma a beleza da variedade monocromática exibida em cada túlipa e em de cada flor que me rodeia.
Arrebatado por tudo o que me rodeia não me apercebo sequer do súbito aspecto fantasmagórico que todas as coisas em meu redor dentro do pátio assumem súbita e inexplicavelmente. Até o mesmo o céu que não é de dia nem de noite muda para qualquer coisa que também não reparo e não sinto como assustadora. No sítio onde me encontro tudo parece sem sentido à excepção das coisas que me interessam num acto natural e tão bem definido por Joseph E. Bigio como, “ human turn their attention to what its relevant to them”. Tão simples quanto isso. Posto como uma anedota: um homem a conduzir um automóvel que olha para todo o lado sempre que passa uma gaja e acaba por ter um acidente frontal.
Absorvido pelos meus preciosos tesouros, as minhas flores, tal e qual o Smigel do Senhor dos Anéis pelo seu anel:
- Preciosas. Minhas preciosas.
Não reparo que num instante como tivesse transportado para uma cidade fantasma onde silva o vento arrastando consigo o temor de uma catástrofe iminente todo o cenário muda assustadoramente.
Noutro universo paralelo e traiçoeiro um antes agradável dia de Maio vai-se transformando pouco a pouco num ambiente invernoso carregado de escuridão e as primeiras gotas de chuva começam silenciosas a cair sob as copas das árvores do parque e sob a superfície plana das águas do lago não tardando transformarem-se num aguaceiro tropical. Todos os odores das flores dão lugar a um cheiro a terra molhada e a clorofila puras. Os patos preparam-se alegres para uma banhoca destilada vinda dos céus, os peixes nadam aos ginetes talvez ainda sonhando com o pão lançado ao lago pelos que passam e os pássaros chilreiam e voam ligeiros e apressados em busca de um abrigo que os proteja e abrigue contra a tempestade iminente. São uns verdadeiros meteorologistas da natureza os animais.
As primeiras gotas de chuva começam a abater-se sobre o meu rosto neste universo em que só o meu corpo se encontra fazendo-me estremecer de novo, não sendo contudo ainda suficiente fortes e tocantes para me trazerem de volta, para me despertarem do transe em que me encontro como se faltasse cumprir qualquer coisa.
Como fizesse já parte desta natureza onde me encontro, os poucos transeuntes que àquela hora por ali passavam já nem reparavam na minha estática presença e não fosse a roupa que tinha vestida passaria sem qualquer problema por mais uma das inúmeras estátuas perdidas dentro do parque.
Contudo, estava como Alice, no meu país das maravilhas, vidrado na beleza das minhas queridas flores e ainda à espera que a minha avó se juntasse a mim na lida diária. Porque tardava tanto? Não me importava e como um médico cuidadoso observava atentamente as minhas plantas procurando quaisquer indícios de doença, pois não conseguindo comunicar com elas na realidade, não lhes podia ouvir os queixumes, diagnosticar as causas desta ou daquela maleita. Restava-me assim olhá-las minuciosamente procurando um piolho, uma lagarta, um caracol ou uma lesma, tudo o que fosse uma ameaça ao desenvolvimento saudável das minhas adoradas amigas.
Agora que a minha avidez pela proximidade com a excelência das flores estava mais satisfeita saio de dentro da pequena estufa e centro a minha atenção na porta da cozinha e avanço feliz quase como flutuando na sua direcção mas, estranhamente como numa imagem onde a porta aparece ao fundo de um cone, quanto mais avanço para lá mais a mesma se parece distanciar de mim como se estivesse fazendo 50m barreiras no fundo do oceano carregando uma pesadíssima pedra sob os meus braços. Todas as coisas assumem um aspecto funesto; o antigo branco de muitas anteriores caiadelas da fachada da cozinha é um fundo negro a arder em chamas e vindo desse ponto que quero alcançar e não consigo ouço um leve e quase inaudível suspiro de morte.
Nesse mesmo instante como numa imagem em Fast-forward e levado pela onde de choque de uma explosão sou transportado a uma velocidade furiosa até ao que antes parecia um pequeno ponto fugindo e neste momento ser a entrada de uma enorme, gélida-fria caverna sem vida. Ali, mesmo à minha frente, quase ao toque da minha mão encontra-se a minha avó. Uma figura enrugada pelas intempéries de uma vida de trabalho árduo sob o desgaste dos elementos encontrava-se recostada serenamente no banco da cozinha pendendo ligeiramente a cabeça sob o seu ombro direito como um passarinho que parece ter o seu frágil pescocinho partido e cujo futuro não alimenta quaisquer esperanças de vida.
Esta devastadora, cruel e inevitável imagem penetra como uma farpa em carne o meu olhar desolado e descrente. Não suportando mais a imagem e levado ao cume de uma montanha exteriorizo toda a minha dor e angustiam num uivo prolongado de lobo solitário; grito de dor como nunca antes o tinha experimentado:
- Não!
Como um louco gritava aquele indivíduo sozinho naquele banco de jardim sob uma chuva torrencial àquela hora tardia do dia até ser trazido de volta a este mundo esquecendo tudo o que vivera do outro lado.
- Não!
Bolas! Exclamo.
Adormeci!
Que horas é que são com isto tudo?
Olho para o relógio e são já 8 da tarde. Não tarda a noite e ainda por cima tá a chover como o caraças.
Burro!
Mas porque é que eu não vim de carro?
Em menos de uma hora é noite e escuro como está por causa da chuva é quase como se já o fosse.
Ajo rapidamente e num salto do banco como uma mola agarrando ao mesmo tempo o jornal e o meu livro e desato correr em direcção a casa.
Tanto o parque como a cidade entraram já na penumbra de um chuvoso crepúsculo iluminado já suavemente a cor dourada pelos distanciados candeeiros públicos.
Falsamente protegido contra a chuva pelas copas dos plátanos porque se por um lado de impediam de receber a chuvada directamente no corpo também transformavam as suas gotas não muito maiores que pérolas em autênticos bagos de uva de mesa. Por isso enquanto acelerava ligeiro pelas avenidas do parque ia mentalmente delineando o trajecto mais curto até casa. Conhecia um atalho e estava decidido a segui-lo. Avançaria na direcção dos pavilhões do parque, passando pelo moribundo Museu de José Malhoa, passaria depois entre o edifício da antiga Escola Comercial e a antiga Casa da Cultura até passar os grandes portões de ferro forjado que iniciavam o parque, para quem entrasse, e serviriam de saída para mim. Depois chegado aí, ao largo do Hospital Termal subiria até ao bem calcetado largo D. Manuel I acompanhando o edifício termal atingindo por fim nas suas traseiras o portão que inicia a mata Rainha D.ª Leonor e para ser ainda mais rápido atalharia caminho pela mata até chegar a casa.

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domingo, julho 12, 2009 - 22:15
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