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Relatorio Nocturno - Capitulo I

Estava deitado no chão, de olhos fechados, mas sentia a humidade da terra nas costas, sem ter qualquer sensação nas pernas ou braços e sem ter noção se estava a respirar. Pousei uma mão no chão e senti a textura de palha moída, pequenas palhinhas duras debaixo dos meus dedos, e terra húmida, terra batida e pisada.
Abri os olhos de leve e vi um telhado antigo, com vigas de madeira preta e telha velha com buracos que deixavam uma ténue luz passar como raios laser na direcção dos meus olhos.
Senti então uma gota de algo, que ainda não sabia o que era, cair-me na testa, fria e pegajosa, um cheiro familiar fez-me abrir os olhos mais uma vez ao mesmo tempo que outra gota me atingia na testa, mas desta vez mais perto dos olhos, escorrendo até ao meu rosto.
Ao levar a mão a testa, lentamente, toquei aquilo que me escorria pela face e olhei os dedos tingidos de um vermelho escuro, com reflexos de preto… reconheci finalmente o cheiro… sangue… sangue frio e a coagular…
Como era possível…
Tentei olhar para cima para ver a origem do sangue, mas era ligeiramente atrás de mim que se encontrava um corpo pendurado pelos pulsos a uma das vigas do tecto, de rosto caído como se me estivesse a olhar, mas as suas pupilas estavam tão dilatadas que já não havia uma alma viva naquele corpo.
Levantei-me o mais rápido que pude e encostei-me a uma das paredes de pedra de costas para aquele espectáculo demoníaco, respirando fundo e fechando os olhos com força esperando que fosse apenas uma ilusão, mas ao olhar de novo lá estava aquele espectro de morte, intacto, exactamente como antes.
Inspirei uma golfada de ar forçadamente para não asfixiar e virei-me olhando para o chão, elevando os meus olhos aos poucos… aproximando o meu campo de visão daquele cadáver pendurado no tecto. Comecei por ver uma pequena mancha de sangue na terra, no local onde antes repousava a minha cabeça, depois os dedos dos pés, mais uma gota escorria do dedo grande do pé esquerdo e caía silenciosamente na terra molhada de sangue. A pele era branca e vislumbravam-se nitidamente todas as veias, de um azul que gritava naquela brancura morta e manchada de vermelho, em ambas as canelas havia múltiplos cortes, profundos, atravessando a pele e expondo o vermelho da carne e o negro do sangue coagulado e quase seco. Os joelhos estavam desprovidos de qualquer pele, negros e queimados, como se tivesse sido arrastado pelo chão sem parar durante horas ou tivesse feito uma penitência durante quilómetros.
As coxas estavam no exacto estado do resto das pernas e… então… senti todo o meu interior contorcer-se ao ver a amputação terrível feita àquele homem…
As costelas estavam também laceradas com golpes profundos, alguns expunham o osso e a cartilagem, então vi finalmente o motivo da morte.
Estava degolado… um corte dividia-lhe o pescoço pela metade de um lado ao outro, exactamente por cima do nó da garganta… a expressão do rosto era terrível… este homem tinha morrido de olhos abertos…
As minhas pernas tremiam sem controlo enquanto me empurrava contra a parede… fazendo força para não cair… com as costas na parede de pedras frias e ásperas…
Assim que recuperei consciência de mim próprio respirei fundo e corri para a enorme porta de madeira, quase podre, com falhas entre as tábuas, faltando um canto superior do lado direito… encostei a testa a porta e levei a mão a boca para não vomitar, ao passar perto do cadáver o cheiro entrou ainda mais profundamente nas minhas narinas. Toquei com a ponta dos dedos na tranca da porta, só depois a agarrei, e aos poucos rodei o pulso, e senti as madeiras darem pequenos estalidos e a porta libertar-se da parede, abrindo na minha direcção… saltei para fora daquela sinistra habitação e sem força nas pernas cai ao sair, levantando-me de seguida e escorregando pela areia do chão afastei-me o mais que pude pelo descampado de erva seca que a rodeava.
Parei e apoiei as mãos nos joelhos, dobrado sobre mim, olhando o chão, tentando respirar, numa completa asfixia… ergui-me lentamente e olhei a minha volta, para o alto, na direcção dos montes que cobriam toda a paisagem, inertes e secos, queimados e sem vida, montes tingidos de castanhos e pretos de arbustos sem vida… notei então estava num caminho de terra marcado por rodas de carro… tentei seguir o percurso com os olhos, notei que se dirigia para a casa de onde eu saíra alguns momentos antes, para as traseiras.
Tentei seguir por aquele caminho traçado entre as ervas secas, tropeçando e escorregando na areia, faltava-me a força, e foi ao passar ao lado da casa que parei de novo… perdi qualquer força que ainda tinha… ajoelhei-me no chão… a visão era demasiado terrível… tentarei descrever…
Nas traseiras da casa erguia-se uma parede de pedras, quase desfeita, de pedras soltas, por trás desta levantavam-se no ar enormes cruzes de madeira a semelhança da própria cruz de Cristo, em madeira bruta e tosca… mas os crucificados não estavam na sua posição normal… estavam de pernas para o ar… pregados ao contrario… mal se reconheciam como seres humanos, esfolados, alguns escorrendo sangue, outros infestados de moscas, um corvo que arrancava de um dos cadáveres os restos de carne ainda agarrados ao osso do braço onde este se poisara… as mãos e os pés tinham sido amputados… as cabeças… onde estavam as cabeças…? Porque alguns ainda escorriam sangue do pescoço…?
Os corpos estavam dispostos como se de um talho se tratasse, esfolados, sem pés e sem mãos, esventrados… decapitados… pendurados… expostos… prontos para serem comidos pelos elementos naturais num festim de podridão…
Não me consegui conter e vomitei desesperadamente… como se levasse pontapés no estômago… quando não podia vomitar mais esforcei-me por respirar e me levantar ao poucos e virar as costas ao cenário sanguinário… mas encarei outro ainda pior… as cabeças… estavam ali todas… encarando os próprios corpos de olhos abertos… com a mesma expressão de terror absoluto que havia visto dentro da casa…
… Os rostos… não podia acreditar... os meus colegas de turma…

…acordei a chorar, lavado em suor, aos gritos para dentro de mim próprio…

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quarta-feira, abril 1, 2009 - 11:02

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Obscuramente

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Comentários

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Re: Relatorio Nocturno - Capitulo I

Se foi a necessidade de relatar um pesadelo, missão cumprida.

Não sei o que te diga, perante tanta carnificina.
Bem escrito, ao estilo próprio de quem gosta de horrores. O Sangue quase se sentia a pingar daqui

Gostei que tivesses participado.

Agadeço

Matilde D'Ônix

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Re: Relatorio Nocturno - Capitulo I

Eu gosto!!!! Maravilhoso, daqueles textos que geram imagens, ao terminar de lê-lo estava com dor de cabeça!!!!
Intenso, tenso e narrado com um que de realismo que espanta, narrado quase que ingenuamente.
Grande imaginação esta tua obscura-mente...
Grande abraço

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Re: Relatorio Nocturno - Capitulo I

Parece que ninguem gosta de ler... que se lixe então...

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