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Rosa branca

  A casa ficava a cerca de 2 km do mar. Era uma casa pequena, azul e branca, com um pequeno quintal nas traseiras, tal e qual todas as outras casas da região. A aldeia, essa, chamava-se Arco da Velha e era uma daquelas terrinhas de fim de província onde toda a gente sabe tudo sobre toda a gente: quem nasce, quem morre, quem casa, quem trai, quem mente... uma daquelas terras de fim de provincia onde os segredos não são segredos e as paredes têm ouvidos.
  Da janela das traseiras via-se o rio, já mais largo pela aproximação da foz. Lá, onde o rio se encontrava finalmente com o mar, ficava o largo promontório de pedra com o farol que tantas vezes trouxera os pescadores de volta a casa. Era um farol cinzento, tão antigo que nem os próprios pescadores sabiam ao certo a sua idade. Mais à frente, onde a areia se mistura com a terra e as casas com as ruas empoeiradas, a igreja austera de pedra escura, onde a velha Angélica se recusava a entrar desde que o mar tinha levado o seu marido, estendia a sua sombra.
Angélica era filha de criados e toda a sua vida fora criada também. A familia para a qual trabalhava era numerosa e ela orgulhava-se de poder dizer que conhecera pessoalmente quatro das suas gerações. Era ainda do tempo da guerra, vivera sob o governo de Salazar e caminhara descalça pelas margens do rio lavando a roupa dos patrões.Costumava sentar-se no alpendre, nas tardes de sol, ora embalando uma das crianças da casa ora lançando os búzios que ela dizia adivinharem o futuro e mostrarem o passado. No mesmo alpendre em que viria a morrer, sem que ninguém soubesse o porquê, olhando o rio de que nunca se afastara.
  Agora, caminhava já mais devagar e tinha mais dificuldade em correr atrás das crianças da casa, mas o seu espirito mantinha-se ainda jovem e a sua energia parecia não ter fim. Só os búzios voavam mais vezes, como um sinal de que o destino se aproximava a passos largos.
  Não tivera uma familia sua além do marido que morrera prematuramente e não voltara a casar, pois para ela homem só havia um. No entanto, sempre considerara como sua a familia dos patrões e como seus os filhos deles e criara-os a todos da mesma maneira. Mas entre todas as crianças que carregara no colo e criara como suas, havia uma de que nunca se poderia esquecer.
  Chamava-se Maria. Era ela, mais que a idade ou o tempo, a razão da pesada tristeza que Angélica carregava, o motivo pelo qual andava devagar e ansiava pelo destino. Nascera numa das primeiras tardes de Outono, altura em que o alpendre virado para o rio ainda era um sitio agradável antes do pesado do Inverno. A sua mãe, frágil desde o seu próprio nascimento, morreu no parto e a velha, como sempre fazia, lançou os búzios ao destino da criança. Mas eles não responderam como era costume.
  Desta vez, nas suas linhas, não havia nada que se parecesse com uma resposta, nada que indicasse felicidade ou sofrimento, uma vida longa ou uma vida curta. Era como se aquela criança não tivesse destino, nem na vida nem na morte. Talvez Angélica devesse ter tido medo, mas amou-a a partir desse momento e nunca deixaria de o fazer. Foi ela que a alimentou em bébé, que a embalou nas noites de pesadelo e lhe ensinou as primeiras palavras, por muito que a sua falta de destino a preocupasse.
  A criança cresceu. Com saúde diziam os médicos, saúdavel de mente e corpo. Mas Angélica sabia que algo se passava.
  Maria não brincava com as outras crianças. Ficava no alpendre, de Verão ou de Inverno, até que a chamassem para casa. E olhava o rio. Simplesmente, olhava o rio. Depois, ao voltar a entrar, contava a Angélica que um barco se afundara no mar, à vista da praia, que morrera um dos homens da aldeia ou que no dia seguinte ia nascer determinada criança. Sabia sempre quando se aproximava uma tempestade, quando se ia perder uma colheita ou quando a pesca ia ser boa. No entanto, nunca respondia a perguntas sobre si mesma e os búzios da criada, que nunca lhe falhavam, continuavam mudos sobre a menina. Para eles, ela não existia.
  Mas para Angélica, havia algo que a intrigava ainda mais que as adivinhações da menina. Afinal, quantas crianças não conhecera já ela que sabiam coisas que não tinham como saber? Muitas vezes viam até os espiritos que ficaram na terra, conheciam avós e desconhecidos mortos muito antes dos seus nascimentos. Sobretudo quando eram pequenos como era Maria. Ela própria sempre conhecera o futuro e o passado de todos, sempre tivera os búzios como parte de si. Não, não era isso o que mais a inquietava na menina.
  Era antes o seu silêncio e as suas rosas.
  Nunca houvera rosas naquela terra. Tentara-se, em tempos, mas as flores não vingavam ali. Uns diziam que a terra era demasiado salgada ou que o clima não as deixava viver, outros, mais crentes, afirmavam que as rosas não suportavam a tristeza das familias dos marinheiros mortos. Mas fosse por que fosse, elas simplesmente não existiam ali. A não ser com Maria.
  Onde quer que ela estivesse, tinha sempre consigo uma rosa. Branca, sempre branca. Quer fosse à beira rio, no quarto ou com Angélica, nas suas mãos havia sempre uma rosa que, por vezes, ela oferecia à criada.
Maria foi crescendo, sempre no seu silêncio de adivinhação, sempre com o seu olhar virado para o rio, sempre com uma rosa branca nas mãos. E Angélica, que parecia não envelhecer, nunca desistiu de perguntar aos seus búzios o destino da menina, por mais que soubesse que eles não lhe iriam responder.
  Até que um dia a menina deixou de ser menina. E o pai achou que chegava de silêncio. E arranjou-lhe um noivo.
 

(continua...)

Anabela Risso

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terça-feira, maio 3, 2011 - 16:05

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Uma escrita que prende a

Uma escrita que prende a atenção do leitor.Um conto com quaçidade narrativa e criatividade.

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