CONCURSOS:

Edite o seu Livro! A corpos editora edita todos os géneros literários. Clique aqui.
Quer editar o seu livro de Poesia?  Clique aqui.
Procuram-se modelos para as nossas capas! Clique aqui.
Procuram-se atores e atrizes! Clique aqui.

 

A víbora

   A igualdade é um cimento. Uma massa não uniforme que nos une ao outro e une o outro

a nós. Haverá quem lhe chame empatia, amizade ou até amor. Estão no vosso direito.

Perdoar-me-ão, mas eu prefiro ser mais prosaico e dar-lhe outro nome: igualdade.

    Sou igual aos meus alunos. Tenho apenas a vantagem, ou a desvantagem como queiram,

de já ter passado por muitos dos locais para onde eles se encaminham. Já lá estive e voltei

para contar. Sou também igual àquele homem que, depois de apostar até a família, escreveu

ao casino para que lhe impedissem a entrada. Segurem-no porque ele não é capaz. Já lá estive

e estou aqui para o silenciar. Permitam-me algum pudor, afinal de contas, ainda mal nos

conhecemos. Sou ainda igual à adolescente que, na ânsia de se livrar de tudo e ser feliz,

terminou a olhar para um bebé sem saber muito bem o que lhe fazer. Nunca lá estive e não o

saberia contar.

   Ei-la que chega. Não é uma surpresa, aguardava-a, se fosse louco diria que até a desejava.

Aproxima-se descrevendo suaves ondulações no soalho da sala. Tenho de reconhecer-lhe

alguma elegância. Levo o copo aos lábios, faço a bebida dançar o tango na minha boca antes

de engolir e acendo um cigarro. Recosto-me ainda mais confortavelmente na poltrona.

  Preparo-me.

  Ela para o dois metros do sofá, enrosca o corpo numa espiral e levanta a cabeça vinte

centímetros acima do chão. Olha-me e eu enfrento aquele olhar.

  A víbora.

  Não sei quanto tempo ali ficámos. Ela imóvel e eu a fumar. Registei, aqui sim com surpresa,

a total ausência de medo.Ter-lhe-ia até sorrido, mas seria desigual, equivaleria a uma vitória

menor, pois o criador, na sua finita sabedoria, não lhe atribuíra essa prerrogativa.

  Já chega, decidi. Apaguei o cigarro. Levanto-me e avanço. O bicharoco permanece quieto. Não

me senti heróico, nunca nos devemos sentir épicos por nos enfrentarmos, é seguro que alguém

pagará por essa tolice. Estendi a braço na direcção dela, os dedos da mão em forma de garra.

Vou esmagar-te a cabeça dentro do meu punho, atirar o teu corpo contra as paredes e fazer

desaparecer os pedaços. Nada restará de ti.

  "Pai"  

  A minha filha esfregava os olhos de sono à entrada da sala.

  " Sim. O que é que se passa. Devias estar a dormir."

  " Tive um pesadelo. Um burro queria comer-me."

  " Um burro. Podias ter escolhido um animal um pouco mais antipático, não te parece. O que é

que aconteceu? "

  Sorriu.

  " Dei-lhe um pontapé e ele fugiu."

  Foi a minha vez de sorrir.

  " Olha, olha, mas que menina tão corajosa que aqui está. Vá, vamos para a cama. Esse burro

já deve ir longe."

  Olhei para trás. O meu bicharoco também desaparecera.

 

http://istodeseserhumano.blogspot.com

Submited by

terça-feira, janeiro 3, 2012 - 13:36

Prosas :

Average: 5 (1 vote)

José Sousa

imagem de José Sousa
Offline
Título: Membro
Última vez online: há 10 anos 40 semanas
Membro desde: 11/17/2011
Conteúdos:
Pontos: 57

Comentários

imagem de Lost Lenore

No canto

Acho que todos temos uma víbora no canto a olhar para nós, a diferença é que uns têm medo e outros não; uns aceitam-na e outros não. Mas no fundo, a diferença reside na capacidade de uns se reconhecerem e outros não...

Beijos :)

imagem de José Sousa

Reconhecimento

No canto que me toca, Lenore, dou comigo por vezes a pensar se não terei um zoológico inteiro, reconheço-o. Junto-me a si quando afirma que o que reconhecemos, em nós e nos outros, é fundamental. Por fim, mas não menos importante, estou-lhe também reconhecido pelo rasto de cumplicidade que as suas palavras aqui deixam e que me toca profundamente. Um sorriso e um beijo.

imagem de Jokalink

Boquiaberto

Foi como fiquei perante os dois miniromances que li.
O Senhor é um craque a brincar com as palavras.
Vê-se que é uma pessoa muito culta.
Um romancista de mão cheia.

Muitos parabéns

Gostei muito.

Abraço.
Jorge Santos.

imagem de José Sousa

Muito obrigado

Meu caro Jokalink, fico-lhe muito grato por estas suas entusiasmantes palavras. Peço-lhe que acredite que, de forma alguma, me deixaram indiferente. São um importante incentivo para quem gosta de colocar uma palavra atrás de outra e atrás de outra.
Um caloroso abraço.

imagem de Nyrleon

Um texto daqueles que não

Um texto daqueles que não queremos que acabe. Parabéns. É belíssimo — em forma e conteúdo.

imagem de José Sousa

   Olá Nyrleon, boa

   Olá Nyrleon, boa tarde.

Agradeço-lhe as palavras que faz o favor de me deixar.  Acredite 

que são um importante incentivo para mim. Um abraço caloroso 

e, mais uma vez, obrigado.

imagem de José Sousa

  Olá Odete, boa noite. Peço

  Olá Odete, boa noite. Peço desculpa se a desconcertei, mas se 

depois conseguiu sorrir, forçosamente sorrir, talvez possa ter a 

esperança de ser perdoado. Obrigado pelas suas sempre 

atenciosas palavras. Um beijo.

 

imagem de Odete Ferreira

Primeiro li com ar

Primeiro li com ar sério, pela originalidade discursiva, pois o texto desconcerta (-me/-nos) a dado passo.

Depois tive de sorrir, forçosamente.

A culpa é das palavras e de quem as sabe usar!!!

Bjo, José Sousa

Add comment

Se logue para poder enviar comentários

other contents of José Sousa

Tópico Título Respostas Views Last Postícone de ordenação Língua
Prosas/Pensamentos Flores e punhais 0 832 07/31/2012 - 22:27 Português
Prosas/Contos A carga da brigada ligeira 2 1.089 07/15/2012 - 11:51 Português
Prosas/Comédia A víbora 8 1.018 07/14/2012 - 19:24 Português
Prosas/Pensamentos Um pouco de pele 0 624 04/10/2012 - 17:52 Português
Prosas/Contos A caverna dos leões 0 873 03/08/2012 - 11:59 Português
Prosas/Drama O bolo 0 951 01/13/2012 - 19:41 Português
Prosas/Contos Sal 0 738 01/07/2012 - 12:07 Português
Prosas/Comédia A inquisição espanhola 2 847 01/04/2012 - 20:55 Português
Prosas/Pensamentos Aqui onde tu estás 2 1.200 12/30/2011 - 11:30 Português
Prosas/Pensamentos Resistência e rasgo 2 1.725 12/29/2011 - 00:08 Português
Prosas/Romance Lar, doce lar 0 1.203 12/25/2011 - 18:15 Português
Prosas/Lembranças A terra de ninguém 1 1.288 11/27/2011 - 19:36 Português
Prosas/Contos O outro lado da rua é um lugar distante 0 997 11/17/2011 - 21:48 Português