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Os longos vales da morte

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Os longos vales da morte

Quero escrever alguma coisa. Dizia-me ele num desespero tal, como que se escrever, fosse para ele a mesmo que respirar para se manter vivo.
Eu mantinha-me na mesma posição. Uma mão a segurar a colher, dentro da chávena do café. A outra trazia-me e levava-me o cigarro do cinzeiro para a boca e da boca para o cinzeiro.
Era um dia igual aos outros, e ele, que era o eu dentro de mim queria escrever, desabafar e deixar sair de dentro de si, de dentro corpo dentro do meu, a dor que sentia. Então eu peguei na caneta e comecei a escrever no papel aquilo que eram as suas certezas.

I

No silencio. Na escuridão, os seus passos era lentos, muito lentos. Não existia qualquer som, nem o arrastar da sua túnica a rasar o chão. O silêncio era eterno. O seu deambulatório infinito das noites infinitas era habitado por almas, por deuses, por fechos de luz negra que não se podia ver na escuridão. O seu mundo era pás de terra a cobrir o caixão com o seu corpo lá dentro. Ela estava morta, como sempre estivera.
Numa hora indistinta das outras, na qual, se existe-se luz seria uma alvorada, ela caminhou nos seus passos lentos por entre os trilhos da sua negra solidão. As suas mãos tocavam as superfícies rugosas das árvores mortas no seu jardim obscuro. Arrastava os seus pés nos picos das rosas mortas espalhadas no chão. A sua existência não fazia qualquer sentido. A noite eterna. As sombras mais escuras que a noite. A sua sombra mais escura que todas as sombras e que todos os Invernos e noites da sua alma despedaçada como um espelho quebrado.
Ela percorria o espaço escuro para recolher a sua alma, a sua alma espalhada como um espelho quebrado, só assim encontraria uma saída da escuridão. A sua busca seria eterna. Ficaria para todo o sempre naquele espaço sem conhecer a luz novamente.
As horas, os dias, os meses e talvez os anos passaram sempre iguais e ela sabia que faltava muito pouco para reconstruir a sua alma e finalmente poder sair daquele labirinto indecifrável e escuro que tinha vivido nos últimos instantes eternos sempre iguais. Ao encontrar o ultimo pedaço de alma, mesmo antes de o segurar nas suas mãos finas e fracas, um raio de luz trespassou a escuridão, primeiro eram pequenos pontos de luz, depois um fino raio e por fim transformou-se num fecho denso de luz brilhante e suave. Ela deteve-se a olhar, não para o fecho de luz mas para o seu labirinto iluminado pela primeira vez desde a sua existência.
As árvores não estavam mortas. As rosas não estavam espalhadas no chão. Ao longe via-se os longos vales infinitos de um verde vivo, uma fonte de água escorria silenciosamente por entre as pedras. Havia edifícios em ruínas, templos eternos da existência daquele lugar. O escárnio da natureza pela luz era uma Primavera. Aquilo era um paraíso que estivera na escuridão até ela encontrar, na totalidade a sua alma. Ela era a salvação daquele paraíso. Quando deixou de vislumbrar aquele lugar, desviou o seu olhar para o fecho de luz e dele nasceu um homem com aparência de um Deus, de um herói grego. Finalmente ela descobria o amor na unificação da sua alma. Abraçaram-se e deixaram-se ficar assim durante muito tempo, até saberem que os seus corpos pertenciam-se mutuamente. Eles amaram-se nos braços um do outro. Quando ele já sabia que tinha o seu amor. Quando ela sabia que tinha o seu amor atirou a sua alma para o paraíso. Ela amava-o, queria ficar com ele eternamente naquele paraíso. Nesse momento a luz começou a enfraquecer ate se apagar e deixar o paraíso novamente na escuridão. Ela continuou agarrada ao homem. O homem continuou agarrado a ela, nos seus braços sentia o seu corpo e o seu calor escasso. Ela sentia o calor do corpo do homem a desaparecer, os seus braços a ficarem cada vez mais fracos o seu coração a deixar de bater.
Ela segurava agora um morto nos seus braços. Sentia o amor cada vez maior dentro do seu peito, a salvação. O retomar da noite eterna, da escuridão e agora, da solidão acompanhada de um cadáver. A sua alma estava novamente espalhada pelos longos vales da morte.

II

No dia em que nos separamos, eu sabia que nunca mais seria o mesmo. Continuaria a ter o meu corpo, as mãos que escrevem estas letras, este ser que escuta as minhas palavras. Sabia que o sol nasceria no dia seguinte. Os rios seriam os mesmos com aguas diferentes e que as lágrimas cairiam dos olhos quando as pessoas tivessem vontade de chorar.
Sabia que todas estas coisas seriam as mesmas no dia seguinte, mas também sabia que nunca mais seria o mesmo. Que a minha forma de viver, de pensar e de existir não seria a mesma. Eu não seria o mesmo.
Sabia que iria viver só. Que morreria só e que o meu coração apodreceria no abismo da solidão. No dia seguinte.
Eu era só. Um ser abandonado no labirinto da existência, mas algo mudou as minhas certezas. Uma voz que me falou.
Em todos os instantes pequenos, que existem dentro de outros instantes mais pequenos ainda, da minha solidão eterna. Aquela voz era um corpo sem corpo. Uma luz sem claridade.
Ao acordar, aquela voz dizia-me: - Sabes que as mentiras são verdades ainda por provar e que os bons são sempre os maus e por isso serás só tu a viver na solidão das tuas letras tortas escritas em linhas direitas.
Deixava-me ficar na cama, com o meu corpo sem vontade de ser corpo, com o rosto a se transformar nos meus ossos debaixo da minha pele, e ouvia aquela voz. A voz das certezas. As certezas da alma que não tenho.
- Sabes, que sempre que acordares irás ouvir as minhas palavras. Sabes que não terás vontade de te levantares e que te vais deixar ficar a apodrecer na cama ao som melancólico da minha voz.
Aquelas palavras eram certezas absolutas. A sua voz era uma certeza que só existia na minha insanidade.
- Está possuído pela loucura, que as outras pessoas vêem em ti, mas na realidade não estás louco. És, sim, um problema do sistema, já mais terás hipótese de te defenderes, de justificar as tuas certezas, mas, ainda assim, serás julgado e irás desaparecer na tua solidão.
Tu és a sombra, o grão de areia que encrava a engrenagem. As tuas certezas são as dores daqueles que vivem em teu redor. És melhor morto. Assim a tua utilidade será maior.
Debaixo da minha pele, da minha carne. Dentro dos meus ossos eu envelheço ouvindo aquela voz. A cada palavra dita, um vaso d sangue, dentro do meu corpo, seca, transformando-se em pó dentro do meu futuro cadáver.
Eu serei pó no pó da Terra. Serei ferrugem que se dissolve, no esquecimento, junto ao mar. Serei abandonado nesta cama quando a minha pele se fundir com os meus ossos em pó. Serei o esquecimento, confinado a estas quatro paredes e a esta voz.
Continuava, eu, ali estendido naquele leito, que sabia que iria ser o meu túmulo. Da janela, via o sol nascer. O corpo sem vontade de viver. Eu sem vontade de mover o meu corpo.
O sol, incandescente, entrava pelos espaços das ripas de madeira que formavam a janela, e rasgavam o ar saturado e amorfo do quarto. Na sua luz baça distinguia-se os pontos de pó, que poderiam ser a minha pele ou os meus cabelos a se desfazerem como cinza e eu deixava-me ficar ali sem vontade de nada.
Com o passar do tempo, dos minutos intermináveis, eu já não sentia fome. Não sentia nada. O meu corpo era, agora, a memória do meu corpo vivo.
- Sabes? O mundo continua lá fora, para lá destas quatro paredes. Para lá da tua vontade de nada. Existem pessoas, que conheces, que passam á tua porta e que não se lembram de ti. Cá dentro o tempo é sempre igual, mas lá fora, há sol quando é Verão e faz frio no Inverno. Agora, cá dentro, onde tu estás, os Invernos e os Verões repetem-se todos os dias. Todos os dias tu tens todas as estações do ano.
De manhã, a Primavera e o sol a entrar pela janela, com os seus primeiros raios de luz ainda mornos, quase frios. Uma Primavera triste, sem flores, sem pássaros nem crianças, nem nada que faça lembrar a Primavera a não ser o sol a entrar pela tua janela fechada. Depois o Verão, a tarde, quando o sol já vai alto e o calor dentro deste quarto começa a ser tão intenso que a tua pele começa a secar, os teus olhos começam a secar. Na tua garganta, uma sensação de areia percorre-a de alto a baixo e pró isso é que sabes que já é tarde e o sol já vai alto.
Quando começa a escurecer, sentes o ar mais fresco, o ar que tanto almejavas ao longo do dia, e só aí percebes que o fim da tarde já chegou lá fora e não tarda nada vai chegar cá dentro, então pensas e sabes que é Outono, como na tua alma, as folhas secas na tua alma. O inicio da depressão. O frio aumenta no teu Outono antes de cair a noite lá fora e a escuridão invadir este quarto novamente. Então o Inverno. Os tempos em que não temos vontade de nada, e para ti é sempre Inverno e a noite é mais longa, dentro deste quarto, do que o Inverno no mundo lá fora.
Tu sabes que envelheces á velocidade dos anos num só dia, e que lá fora, como as pessoas ainda com vida, os anos passam á velocidade dos dias. Tu já não tens vida. Tu és uma sombra na noite, um universo morto distante deste universo.
A origem de tudo é longe de ti. Tu a morres nesse longo vale da morte.
A distancia da tua existência ao mundo tem o tamanho da tua vontade somada á espessura destas paredes. Tu és a soma trivial de um néctar esquecido e das areias abandonadas nos desertos. O teu peso é o mesmo que a palavra Amor, quando a dizes na escuridão deste quarto. O peso da tua impossibilidade.
O teu amor, igual a uma partícula de pó. O teu vazio infinito. O teu. Nada.
Naquele quarto, a minha dor exorbitante de não ter dor, de envelhecer dia após dia, ano após ano e acordar de sonos distantes e de sonhos dolorosos sem dor e saber que tudo está errado porque ela não está comigo, acredito neste coração de cinza, nesta voz das minha certezas nas quais não quero acreditar.
Mais um Inverno a morrer para uma Primavera no meu quarto. O meu corpo a morrer. A minha pele a se colar aos meus ossos. O meu cadáver, ainda vivo, a esperar, mais uma vez, a luz do dia que nasce distante de mim.
Deambulo o meu olhar, pelas quatro paredes do meu quarto, daquele quarto que será o meu caixão. Os livros na estante. Todos os livros da minha vida. Todas as historias que me criaram e, agora, num olhar misericordioso, me fitam com tristeza e assistem ao meu fim.
Todas as lombadas de todas as cores, com olhos que escrevem os títulos e nomes de autores. De autores mortos, com as suas mortes escritas em paginas amarelecidas pelo tempo, que li e que agora assistem á minha morte.
Livros organizados num caos sistemático da minha existência. Eu existia naqueles livros, naquela estante e dentro de todos os livros. Ouço os murmúrios das letras, de todas as letras em todos os livros, que segredam a minha vida passada. Falam dos meus dedos, outrora grossos e ágeis a passar as suas folhas. Os meus olhos a fitarem-nas. As minhas mãos fortes a segurarem as suas capas.
O meu corpo, ainda corpo de Humano, sentado na cadeira ao canto do quarto, iluminado pela luz em cima da mesa. Eu era um ser vivo.
Aqueles livros eram a minha vida. Os meus dias de solidão quando dizia a palavra Amor.
Na escuridão do meu quarto, talvez iluminado pela luz do candeeiro em cima da mesa, a sua luz nunca chegara aos confins do meu quarto. Eu deixava-me ficar, naqueles minutos infinitos e indistintos uns dos outros, a folhear todas as páginas daqueles livros.
Houve momentos em que pensei que era um livro, em que acreditei ser o livro que segurava nas mãos e via-me a segurar-me sentado na cadeira mal iluminada pela luz do candeeiro.
Eu a ser um o livro e a sentir os meus dedos a virar as minhas páginas. Os meus olhos a lerem as letras que me olhavam e eu lia-as. Eu era um livro nesses minutos indistintos uns dos outros.
Agora sou um corpo á espera da morte e os livros olham-me e vêem-me a morrer.
No outro lado do quarto, a minha secretaria, ainda com as minhas anotações. O manuscrito do meu livro. A fotografia dela ao canto da mesa. Ela era a minha imaginação. Os seus olhos azuis. Os seus cabelos louros, longos.
O rascunho do meu livro os longos vales da morte, com a caneta desmaiada sobre as folhas, da mesma forma que eu a deixei da ultima vez que lhe peguei e escrevi estas palavras: “o amor é um veneno que temos que saber como tomar”.
Aquele livro era a minha vida e o meu final, ela era a minha morte, tal como esta voz que me diz que sou.
Naquelas páginas, naquelas linhas estavam escritas as letras que descreviam o meu veneno e o meu possível fim.
Na estante, continuavam os livros que me viam envelhecer. O pó que os cobriam eram as suas lágrimas. A sua tristeza e a sua solidão, abandonada na estante ao longo dos meus dias.
Numa das paredes estava pendurado uma réplica de Dali, os relógios moles, que durante anos, nunca tivera o sentido lógico que agora tem.
Naqueles anos, em que eu era nova, tinha sonhos em que desejava ser sempre novo, ou pelo menos, não envelhecer, aquele quadro era algo que eu venerava. A forma como as tintas estavam dispersas na tela. Os contrastes cromáticos que me lembravam as alvoradas de Inverno, quando o sol rasga as nuvens e encontra o nosso rosto, e no frio da madrugada esse sol é algo parecido a um Deus.
As pinceladas, inconfundíveis. Eu conhecia cada uma das pinceladas. Cada uma contava-me uma história. Pinceladas horizontais. Obliquas, verticais, todo um universo de direcções possíveis. Um universo de historias possíveis. De viagens surrealistas vividas pelo pintor no momento da sua consagração. Eu vivia essas pinceladas.
Finalmente, os relógios. Eu adorava ver o tempo passar, porque só assim passava mais devagar. Eu imaginava-me naquele quadro a contar o tempo a passar naqueles relógios. Quando imaginava, acreditava que o tempo também seria mole e demoraria mais tempo a passar e eu envelheceria mais devagar. Viveria mais tempo. Teria mais tempo para fazer o que sempre fazia, mas fá-lo-ia mais vezes.
Nesse tempo, o significado desse quadro era mais tempo de vida, hoje, o mesmo quadro está pendurado no mesmo lugar e significar algo completamente diferente. Mostra-me o tempo parado. O tempo que sofro por querer morrer e não poder. De não ter vontade de viver e da não poder morrer. Mais tempo de morte.
As suas cores são as mesmas de sempre, mas as minhas alvoradas de Inverno já não são iguais, ou pelo menos não com a mesma forma, com a mesma emoção e significado. O relógio sobre a mesa, como os do quadro, não é mole mas está parado e a dado instante em que os meus olhos se cruzam com ele, eu sei que estou a morrer e não tenho vontade de suprimir a minha existência.
Com o passar dos anos as nossas crenças passam a certezas, e hoje, tenho a certeza que aquele quadro sempre me quis dizer isto que hoje estou a viver. A falta de vontade de viver e a falta de vontade de morrer, quando a agora odeio o tempo que antes amava.
- A vida traiu-te e tu sabes disso. Sabes que os mesmos livros, hoje não são os mesmos e que aquele quadro sempre te disse o que nunca quiseste acreditar e que agora são as tuas certezas.
As tuas incógnitas de outrora, são duvidas metódicas que se transformaram nas tuas verdades absolutas.
Os vales da tua memória são escarpas de dor, nos quais os seios, de outrora férteis, são agora cicatrizes nos nós de um tronco ancestral que apodrece na tua alma. A natureza dos teus desejos é igual ao marcar das horas num espelho invisível onde te vês em dias de solidão. O teu oblívio amor, que jaz na tua mão envelhecida, onde a tua pele se funde com os ossos, chama o teu nome nas chamas e nas cinzas da tua tristeza. A tua memoria no horizonte distante e infinito do teu ser inacabado.
Os dias passavam sempre iguais naquele quarto, da janela eu via o Inverno e todas as estações do ano. Eu envelhecia á velocidade dos anos. A voz continuava com as suas realidades que eram as minhas certezas. Os meus ossos, cada vez mais visíveis sob a pele putrefacta. Eu envelhecia. As páginas dos livros ganhavam pó e lágrimas. O meu cabelo tornava-se em fios de cinza sem cinza. Naquelas horas eu percorria os labirintos de cinza, dos quais já mais poderia sair. Eu morria sem vontade de morrer e mantinha-me vivo sem vontade de morrer.
Das paredes, antigamente brancas, nascia a putrefacçao. Da minha alma nada se criava.
Todo o meu quarto, pequeno e com uma só janela, era a minha morte anunciada, da qual eu já mais queria acreditar.
- Os teus desejos são mortes sem comparação á morte que vives. Os teus labirintos temporais, nos quais existes e nos quais existias, são cinzas que percorres procurando alguém para culpar, por isto que está a acontecer, mas, infindavelmente, inevitavelmente tu sabes que essa procura acabará quando do meio das cinzas surgir a tua cara.
As florestas, mortas das tuas certezas. As suas ramificações antigas, gastas e rugosas, podem ser fundidas no teu peito como labirintos de artérias secas que nascem no teu coração. Tu és a agua envenenada que compõe o teu corpo. Tu és o veneno sem antídoto derramado nos teus lábios sedentos de amor, no teu peito fraco e abandonado pelo coração. Tu és a tua memória e o esquecimento do mundo, fora destas quatro paredes.
Aflora, grotescamente, a sombra mais escura da noite dentro da tua noite, ainda mais densa que todos os Invernos e sabes que o fim…está…muito…muito…longe de chegar. Sabes que a tua morte será lenta, contada no tempo dos relógios moles.
Quando podes, moves os teus olhos, deambulando-os amargamente na escuridão do teu quarto e finalmente fitando o fecho de luz, que rasga a noite destas paredes, vindo da janela, tu vês pessoas lá fora, passando, ignorando a tua dor e tens a certeza que as conheces, mas tu estás só e longe de casa e alem de mim, que existo dentro de ti, não falas com mais ninguém.
Eu conheço os teus pensamentos. As tuas confusões, os teus desesperos por mim, mas eu sou tu e quanto a isso não podes fazer nada.
Eu sou a tua vida, a tua fraqueza e serei, quando essa hora chegar, a tua morte.
Olhos os rectângulos de luz, na janela, que cortam o ar, com a mesma intensidade, que cortam o meu corpo e a minha alma.
Essa luz é interrompida por sombras de pessoas, que antigamente, paravam á minha porta e entravam para saber de mim. Eu conheço os seus rostos agora como os conhecia antigamente. Conheço os seus desejos, os seus medos. Sei, agora que existem, porque as suas sombras cortam a luz que entra, e também as suas sombras estão no meu quarto.
Na solidão, eu sei que eles existem. Sei que estão lá fora e vivem como sempre viveram, mas não sei, nem posso saber, se sabem da minha existência.
Para sermos sós não é necessário que a solidão nos toque, basta que o esquecimento chegue aos outros.
- És um vazio, um eco distante deste universo. As raízes são fracas e já mais poderás compreender estas palavras.
O teu sangue evapora dentro de ti. As flores que nascem no teu peito são marés turbulentos que fazem encalhar e naufragar os navios nos rochedos do teu coração.
Tornaste-te o corpo das tormentas, para quem queira navegar nos teus trilhos, para quem queira descobrir e conhecer os teus tesouros, que outrora guardavas em ti. O teu tesouro, esquecido nas cinzas da tua alma, será eternamente oblívio.
O excesso de silêncio na minha alma, no meu quarto é interrompido pelo arrastar do ar nos meus pulmões que caminha até a minha boca quase fechada. Um arrastar que rasgar a minha garganta, que desfaz os meus alvéolos. Que me mata muito devagar.
O ar que respiro é veneno; é lume e areia que se desfaz ao largar o meu corpo, mas inevitavelmente provoca danos irreversíveis dentro de mim.
Imagino-me novamente capacitado de pegar na minha caneta e de continuar a escrever. Capaz de pegar na sua fotografia e ver o seu, que agora é o meu veneno. A caneta a correr sobre o papel, os meus dedos a percorrerem o seu rosto por detrás do vidro da moldura.
Agora sei que tudo começou num desses momentos. Num desses instantes em que disse a palavra Amor na solidão e na escuridão do meu quarto. O peso dessa palavra, tinha o peso da minha alam triste.
- As eterna hora, segundos e instantes infinitos que vives na escuridão são momentos de vida lá fora. Sabes que já mais encontrarás paz aqui. É melhor ganhares coragem e vontade se quiseres viver. Mas tu não tem vontade de nada, por vezes apetece-te segurar a caneta e continuar a escrever, outras vezes de te sentares no chão e gritares até que o universo se condense á tua volta, que possas juntá-lo na palma da tua mão cicatrizada e envelhecida, todas as vidas que conheceste, todos os instantes que viveste, todas as tuas coisas, os quadros, os livros, as flores que nunca tiveste, o cão que morreu há muito. Queres voltar a viver mas não tens vontade.
Quando podes, imaginas a linha do horizonte, as nuvens que engolem essa linha. Todas as tuas dúvidas estão lá. As respostas ás tuas perguntas estão abaixo dessa linha, impossíveis de alcançar.
Recordas-te, momentaneamente, das horas que esperaste por nada, sentado naquele miradouro, de onde não vias mais nada que agua e céu, e ainda aquela linha que os separava ou que os une. Onde imaginaste a tua solidão e onde escrevias estas linhas, que o teu corpo, agora escreve. Desejas-te sempre ser só, mas nunca, mas nunca pensaste que pudesse ser assim. Vias o sol se esconder para lá da linha imaginária, aquela linha horizontal onde tudo existe e acontece. Sentias o vento fraco a bater no teu rosto e imaginavas como seria seres o vento. Escutavas os sons da cidade nas tuas costas enquanto que vagueavas o teu olhar pelo vazio. Tinhas que ter cuidado com aquilo que desejavas, porque podia acontecer, mas isso nunca te interessou. Querias ser só. Almejavas saborear a solidão e poderes dizer ás pessoas, quando falassem contigo, que sabias o que era realmente a solidão.
Agora, que não podes falar com ninguém, porque a tua voz desapareceu como a tua vontade, os teus lábios fundiram-se e transformaram a tua boca num tecido denso que a fez desaparecer, agora que o teu corpo consumiu a própria língua, sabes o que é a solidão.
Sabes o que é estar só, provavelmente, sabes o que é o amor e não podes dize-lo porque não podes falar, nem podes te mexer e também porque ninguém se lembra de ti.
Por vezes sonhas e eu vivo nos teus sonhos e sei o quão dolorosos eles são para mim que ainda sinto dor e não para ti que não sentes nada. E sempre que sonhas o sonho é sempre o mesmo.
Da última vez que sonhaste, morreste e feliz com isso, ainda no teu sonho, acreditaste que tinhas chagado ao fim, mas sem saberes porquê, imaginaste uma ponte de luz que atravessava um rio eterno e então caminhaste.
No meio da escuridão, depois da ponte, transformaste-te num fecho de luz e depois num homem. Ao abrires os olhos viste-a, o teu amor, a tua imaginação. Os teus braços seguravam o seu corpo. Viste aquele paraíso que estava na escuridão até tu apareceres. Ela estava na escuridão.
Sentiste o calor do seu corpo junto ao teu. Podias agora voltar a ter uma vida, mas a vingança é um preto que se serve frio. Ela, a mesma da fotografia no canto da mesa, a culpada pelo teu fim, estava só na escuridão da vida. Tu sabias que ias morrer. Sabias, agora, mais que nunca, que tinhas que morrer, bastava imaginares o teu coração a parar de bater.
Imaginaste e o teu coração parou.
Sabes, que no mundo lá fora, algures, num quarto como este, ela está a sentir o mesmo que tu. Sabes que os teus medos são nuvens que se desfazem ao vento e que as tuas dúvidas se tornaram nas tuas certezas.
A tua existência, esquecida por todos, está a chegar ao fim, porque, agora sim, não tens vontade de nada e basta imaginares o teu coração a parar de bater para morreres.
No meu quarto, o quadro era o mesmo, a caneta, sobre o papel, era a mesma, os livros eram os mesmos. Desviei os meus olhos sem força para a janela. O ultimo raio de luz entrou pela janela e cortou o ar na direcção da minha cara. O meu corpo era agora um relevo de pele fundida aos ossos, a minha cara, já não era uma cara mas sim uma caveira coberta de pele. Eu era pó e cinza com forma de corpo morto. O último raio de luz avançava para mim, para os meus olhos, cortando todo o espaço do meu quarto na escuridão. Ao atingir os meus olhos, fechei-os e morri.

Fernando Torga

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Os longos vales da morte

Quero escrever alguma coisa. Dizia-me ele num desespero tal, como que se escrever, fosse para ele a mesmo que respirar para se manter vivo.
Eu mantinha-me na mesma posição. Uma mão a segurar a colher, dentro da chávena do café. A outra trazia-me e levava-me o cigarro do cinzeiro para a boca e da boca para o cinzeiro.
Era um dia igual aos outros, e ele, que era o eu dentro de mim queria escrever, desabafar e deixar sair de dentro de si, de dentro corpo dentro do meu, a dor que sentia. Então eu peguei na caneta e comecei a escrever no papel aquilo que eram as suas certezas.

I

No silencio. Na escuridão, os seus passos era lentos, muito lentos. Não existia qualquer som, nem o arrastar da sua túnica a rasar o chão. O silêncio era eterno. O seu deambulatório infinito das noites infinitas era habitado por almas, por deuses, por fechos de luz negra que não se podia ver na escuridão. O seu mundo era pás de terra a cobrir o caixão com o seu corpo lá dentro. Ela estava morta, como sempre estivera.
Numa hora indistinta das outras, na qual, se existe-se luz seria uma alvorada, ela caminhou nos seus passos lentos por entre os trilhos da sua negra solidão. As suas mãos tocavam as superfícies rugosas das árvores mortas no seu jardim obscuro. Arrastava os seus pés nos picos das rosas mortas espalhadas no chão. A sua existência não fazia qualquer sentido. A noite eterna. As sombras mais escuras que a noite. A sua sombra mais escura que todas as sombras e que todos os Invernos e noites da sua alma despedaçada como um espelho quebrado.
Ela percorria o espaço escuro para recolher a sua alma, a sua alma espalhada como um espelho quebrado, só assim encontraria uma saída da escuridão. A sua busca seria eterna. Ficaria para todo o sempre naquele espaço sem conhecer a luz novamente.
As horas, os dias, os meses e talvez os anos passaram sempre iguais e ela sabia que faltava muito pouco para reconstruir a sua alma e finalmente poder sair daquele labirinto indecifrável e escuro que tinha vivido nos últimos instantes eternos sempre iguais. Ao encontrar o ultimo pedaço de alma, mesmo antes de o segurar nas suas mãos finas e fracas, um raio de luz trespassou a escuridão, primeiro eram pequenos pontos de luz, depois um fino raio e por fim transformou-se num fecho denso de luz brilhante e suave. Ela deteve-se a olhar, não para o fecho de luz mas para o seu labirinto iluminado pela primeira vez desde a sua existência.
As árvores não estavam mortas. As rosas não estavam espalhadas no chão. Ao longe via-se os longos vales infinitos de um verde vivo, uma fonte de água escorria silenciosamente por entre as pedras. Havia edifícios em ruínas, templos eternos da existência daquele lugar. O escárnio da natureza pela luz era uma Primavera. Aquilo era um paraíso que estivera na escuridão até ela encontrar, na totalidade a sua alma. Ela era a salvação daquele paraíso. Quando deixou de vislumbrar aquele lugar, desviou o seu olhar para o fecho de luz e dele nasceu um homem com aparência de um Deus, de um herói grego. Finalmente ela descobria o amor na unificação da sua alma. Abraçaram-se e deixaram-se ficar assim durante muito tempo, até saberem que os seus corpos pertenciam-se mutuamente. Eles amaram-se nos braços um do outro. Quando ele já sabia que tinha o seu amor. Quando ela sabia que tinha o seu amor atirou a sua alma para o paraíso. Ela amava-o, queria ficar com ele eternamente naquele paraíso. Nesse momento a luz começou a enfraquecer ate se apagar e deixar o paraíso novamente na escuridão. Ela continuou agarrada ao homem. O homem continuou agarrado a ela, nos seus braços sentia o seu corpo e o seu calor escasso. Ela sentia o calor do corpo do homem a desaparecer, os seus braços a ficarem cada vez mais fracos o seu coração a deixar de bater.
Ela segurava agora um morto nos seus braços. Sentia o amor cada vez maior dentro do seu peito, a salvação. O retomar da noite eterna, da escuridão e agora, da solidão acompanhada de um cadáver. A sua alma estava novamente espalhada pelos longos vales da morte.

II

No dia em que nos separamos, eu sabia que nunca mais seria o mesmo. Continuaria a ter o meu corpo, as mãos que escrevem estas letras, este ser que escuta as minhas palavras. Sabia que o sol nasceria no dia seguinte. Os rios seriam os mesmos com aguas diferentes e que as lágrimas cairiam dos olhos quando as pessoas tivessem vontade de chorar.
Sabia que todas estas coisas seriam as mesmas no dia seguinte, mas também sabia que nunca mais seria o mesmo. Que a minha forma de viver, de pensar e de existir não seria a mesma. Eu não seria o mesmo.
Sabia que iria viver só. Que morreria só e que o meu coração apodreceria no abismo da solidão. No dia seguinte.
Eu era só. Um ser abandonado no labirinto da existência, mas algo mudou as minhas certezas. Uma voz que me falou.
Em todos os instantes pequenos, que existem dentro de outros instantes mais pequenos ainda, da minha solidão eterna. Aquela voz era um corpo sem corpo. Uma luz sem claridade.
Ao acordar, aquela voz dizia-me: - Sabes que as mentiras são verdades ainda por provar e que os bons são sempre os maus e por isso serás só tu a viver na solidão das tuas letras tortas escritas em linhas direitas.
Deixava-me ficar na cama, com o meu corpo sem vontade de ser corpo, com o rosto a se transformar nos meus ossos debaixo da minha pele, e ouvia aquela voz. A voz das certezas. As certezas da alma que não tenho.
- Sabes, que sempre que acordares irás ouvir as minhas palavras. Sabes que não terás vontade de te levantares e que te vais deixar ficar a apodrecer na cama ao som melancólico da minha voz.
Aquelas palavras eram certezas absolutas. A sua voz era uma certeza que só existia na minha insanidade.
- Está possuído pela loucura, que as outras pessoas vêem em ti, mas na realidade não estás louco. És, sim, um problema do sistema, já mais terás hipótese de te defenderes, de justificar as tuas certezas, mas, ainda assim, serás julgado e irás desaparecer na tua solidão.
Tu és a sombra, o grão de areia que encrava a engrenagem. As tuas certezas são as dores daqueles que vivem em teu redor. És melhor morto. Assim a tua utilidade será maior.
Debaixo da minha pele, da minha carne. Dentro dos meus ossos eu envelheço ouvindo aquela voz. A cada palavra dita, um vaso d sangue, dentro do meu corpo, seca, transformando-se em pó dentro do meu futuro cadáver.
Eu serei pó no pó da Terra. Serei ferrugem que se dissolve, no esquecimento, junto ao mar. Serei abandonado nesta cama quando a minha pele se fundir com os meus ossos em pó. Serei o esquecimento, confinado a estas quatro paredes e a esta voz.
Continuava, eu, ali estendido naquele leito, que sabia que iria ser o meu túmulo. Da janela, via o sol nascer. O corpo sem vontade de viver. Eu sem vontade de mover o meu corpo.
O sol, incandescente, entrava pelos espaços das ripas de madeira que formavam a janela, e rasgavam o ar saturado e amorfo do quarto. Na sua luz baça distinguia-se os pontos de pó, que poderiam ser a minha pele ou os meus cabelos a se desfazerem como cinza e eu deixava-me ficar ali sem vontade de nada.
Com o passar do tempo, dos minutos intermináveis, eu já não sentia fome. Não sentia nada. O meu corpo era, agora, a memória do meu corpo vivo.
- Sabes? O mundo continua lá fora, para lá destas quatro paredes. Para lá da tua vontade de nada. Existem pessoas, que conheces, que passam á tua porta e que não se lembram de ti. Cá dentro o tempo é sempre igual, mas lá fora, há sol quando é Verão e faz frio no Inverno. Agora, cá dentro, onde tu estás, os Invernos e os Verões repetem-se todos os dias. Todos os dias tu tens todas as estações do ano.
De manhã, a Primavera e o sol a entrar pela janela, com os seus primeiros raios de luz ainda mornos, quase frios. Uma Primavera triste, sem flores, sem pássaros nem crianças, nem nada que faça lembrar a Primavera a não ser o sol a entrar pela tua janela fechada. Depois o Verão, a tarde, quando o sol já vai alto e o calor dentro deste quarto começa a ser tão intenso que a tua pele começa a secar, os teus olhos começam a secar. Na tua garganta, uma sensação de areia percorre-a de alto a baixo e pró isso é que sabes que já é tarde e o sol já vai alto.
Quando começa a escurecer, sentes o ar mais fresco, o ar que tanto almejavas ao longo do dia, e só aí percebes que o fim da tarde já chegou lá fora e não tarda nada vai chegar cá dentro, então pensas e sabes que é Outono, como na tua alma, as folhas secas na tua alma. O inicio da depressão. O frio aumenta no teu Outono antes de cair a noite lá fora e a escuridão invadir este quarto novamente. Então o Inverno. Os tempos em que não temos vontade de nada, e para ti é sempre Inverno e a noite é mais longa, dentro deste quarto, do que o Inverno no mundo lá fora.
Tu sabes que envelheces á velocidade dos anos num só dia, e que lá fora, como as pessoas ainda com vida, os anos passam á velocidade dos dias. Tu já não tens vida. Tu és uma sombra na noite, um universo morto distante deste universo.
A origem de tudo é longe de ti. Tu a morres nesse longo vale da morte.
A distancia da tua existência ao mundo tem o tamanho da tua vontade somada á espessura destas paredes. Tu és a soma trivial de um néctar esquecido e das areias abandonadas nos desertos. O teu peso é o mesmo que a palavra Amor, quando a dizes na escuridão deste quarto. O peso da tua impossibilidade.
O teu amor, igual a uma partícula de pó. O teu vazio infinito. O teu. Nada.
Naquele quarto, a minha dor exorbitante de não ter dor, de envelhecer dia após dia, ano após ano e acordar de sonos distantes e de sonhos dolorosos sem dor e saber que tudo está errado porque ela não está comigo, acredito neste coração de cinza, nesta voz das minha certezas nas quais não quero acreditar.
Mais um Inverno a morrer para uma Primavera no meu quarto. O meu corpo a morrer. A minha pele a se colar aos meus ossos. O meu cadáver, ainda vivo, a esperar, mais uma vez, a luz do dia que nasce distante de mim.
Deambulo o meu olhar, pelas quatro paredes do meu quarto, daquele quarto que será o meu caixão. Os livros na estante. Todos os livros da minha vida. Todas as historias que me criaram e, agora, num olhar misericordioso, me fitam com tristeza e assistem ao meu fim.
Todas as lombadas de todas as cores, com olhos que escrevem os títulos e nomes de autores. De autores mortos, com as suas mortes escritas em paginas amarelecidas pelo tempo, que li e que agora assistem á minha morte.
Livros organizados num caos sistemático da minha existência. Eu existia naqueles livros, naquela estante e dentro de todos os livros. Ouço os murmúrios das letras, de todas as letras em todos os livros, que segredam a minha vida passada. Falam dos meus dedos, outrora grossos e ágeis a passar as suas folhas. Os meus olhos a fitarem-nas. As minhas mãos fortes a segurarem as suas capas.
O meu corpo, ainda corpo de Humano, sentado na cadeira ao canto do quarto, iluminado pela luz em cima da mesa. Eu era um ser vivo.
Aqueles livros eram a minha vida. Os meus dias de solidão quando dizia a palavra Amor.
Na escuridão do meu quarto, talvez iluminado pela luz do candeeiro em cima da mesa, a sua luz nunca chegara aos confins do meu quarto. Eu deixava-me ficar, naqueles minutos infinitos e indistintos uns dos outros, a folhear todas as páginas daqueles livros.
Houve momentos em que pensei que era um livro, em que acreditei ser o livro que segurava nas mãos e via-me a segurar-me sentado na cadeira mal iluminada pela luz do candeeiro.
Eu a ser um o livro e a sentir os meus dedos a virar as minhas páginas. Os meus olhos a lerem as letras que me olhavam e eu lia-as. Eu era um livro nesses minutos indistintos uns dos outros.
Agora sou um corpo á espera da morte e os livros olham-me e vêem-me a morrer.
No outro lado do quarto, a minha secretaria, ainda com as minhas anotações. O manuscrito do meu livro. A fotografia dela ao canto da mesa. Ela era a minha imaginação. Os seus olhos azuis. Os seus cabelos louros, longos.
O rascunho do meu livro os longos vales da morte, com a caneta desmaiada sobre as folhas, da mesma forma que eu a deixei da ultima vez que lhe peguei e escrevi estas palavras: “o amor é um veneno que temos que saber como tomar”.
Aquele livro era a minha vida e o meu final, ela era a minha morte, tal como esta voz que me diz que sou.
Naquelas páginas, naquelas linhas estavam escritas as letras que descreviam o meu veneno e o meu possível fim.
Na estante, continuavam os livros que me viam envelhecer. O pó que os cobriam eram as suas lágrimas. A sua tristeza e a sua solidão, abandonada na estante ao longo dos meus dias.
Numa das paredes estava pendurado uma réplica de Dali, os relógios moles, que durante anos, nunca tivera o sentido lógico que agora tem.
Naqueles anos, em que eu era nova, tinha sonhos em que desejava ser sempre novo, ou pelo menos, não envelhecer, aquele quadro era algo que eu venerava. A forma como as tintas estavam dispersas na tela. Os contrastes cromáticos que me lembravam as alvoradas de Inverno, quando o sol rasga as nuvens e encontra o nosso rosto, e no frio da madrugada esse sol é algo parecido a um Deus.
As pinceladas, inconfundíveis. Eu conhecia cada uma das pinceladas. Cada uma contava-me uma história. Pinceladas horizontais. Obliquas, verticais, todo um universo de direcções possíveis. Um universo de historias possíveis. De viagens surrealistas vividas pelo pintor no momento da sua consagração. Eu vivia essas pinceladas.
Finalmente, os relógios. Eu adorava ver o tempo passar, porque só assim passava mais devagar. Eu imaginava-me naquele quadro a contar o tempo a passar naqueles relógios. Quando imaginava, acreditava que o tempo também seria mole e demoraria mais tempo a passar e eu envelheceria mais devagar. Viveria mais tempo. Teria mais tempo para fazer o que sempre fazia, mas fá-lo-ia mais vezes.
Nesse tempo, o significado desse quadro era mais tempo de vida, hoje, o mesmo quadro está pendurado no mesmo lugar e significar algo completamente diferente. Mostra-me o tempo parado. O tempo que sofro por querer morrer e não poder. De não ter vontade de viver e da não poder morrer. Mais tempo de morte.
As suas cores são as mesmas de sempre, mas as minhas alvoradas de Inverno já não são iguais, ou pelo menos não com a mesma forma, com a mesma emoção e significado. O relógio sobre a mesa, como os do quadro, não é mole mas está parado e a dado instante em que os meus olhos se cruzam com ele, eu sei que estou a morrer e não tenho vontade de suprimir a minha existência.
Com o passar dos anos as nossas crenças passam a certezas, e hoje, tenho a certeza que aquele quadro sempre me quis dizer isto que hoje estou a viver. A falta de vontade de viver e a falta de vontade de morrer, quando a agora odeio o tempo que antes amava.
- A vida traiu-te e tu sabes disso. Sabes que os mesmos livros, hoje não são os mesmos e que aquele quadro sempre te disse o que nunca quiseste acreditar e que agora são as tuas certezas.
As tuas incógnitas de outrora, são duvidas metódicas que se transformaram nas tuas verdades absolutas.
Os vales da tua memória são escarpas de dor, nos quais os seios, de outrora férteis, são agora cicatrizes nos nós de um tronco ancestral que apodrece na tua alma. A natureza dos teus desejos é igual ao marcar das horas num espelho invisível onde te vês em dias de solidão. O teu oblívio amor, que jaz na tua mão envelhecida, onde a tua pele se funde com os ossos, chama o teu nome nas chamas e nas cinzas da tua tristeza. A tua memoria no horizonte distante e infinito do teu ser inacabado.
Os dias passavam sempre iguais naquele quarto, da janela eu via o Inverno e todas as estações do ano. Eu envelhecia á velocidade dos anos. A voz continuava com as suas realidades que eram as minhas certezas. Os meus ossos, cada vez mais visíveis sob a pele putrefacta. Eu envelhecia. As páginas dos livros ganhavam pó e lágrimas. O meu cabelo tornava-se em fios de cinza sem cinza. Naquelas horas eu percorria os labirintos de cinza, dos quais já mais poderia sair. Eu morria sem vontade de morrer e mantinha-me vivo sem vontade de morrer.
Das paredes, antigamente brancas, nascia a putrefacçao. Da minha alma nada se criava.
Todo o meu quarto, pequeno e com uma só janela, era a minha morte anunciada, da qual eu já mais queria acreditar.
- Os teus desejos são mortes sem comparação á morte que vives. Os teus labirintos temporais, nos quais existes e nos quais existias, são cinzas que percorres procurando alguém para culpar, por isto que está a acontecer, mas, infindavelmente, inevitavelmente tu sabes que essa procura acabará quando do meio das cinzas surgir a tua cara.
As florestas, mortas das tuas certezas. As suas ramificações antigas, gastas e rugosas, podem ser fundidas no teu peito como labirintos de artérias secas que nascem no teu coração. Tu és a agua envenenada que compõe o teu corpo. Tu és o veneno sem antídoto derramado nos teus lábios sedentos de amor, no teu peito fraco e abandonado pelo coração. Tu és a tua memória e o esquecimento do mundo, fora destas quatro paredes.
Aflora, grotescamente, a sombra mais escura da noite dentro da tua noite, ainda mais densa que todos os Invernos e sabes que o fim…está…muito…muito…longe de chegar. Sabes que a tua morte será lenta, contada no tempo dos relógios moles.
Quando podes, moves os teus olhos, deambulando-os amargamente na escuridão do teu quarto e finalmente fitando o fecho de luz, que rasga a noite destas paredes, vindo da janela, tu vês pessoas lá fora, passando, ignorando a tua dor e tens a certeza que as conheces, mas tu estás só e longe de casa e alem de mim, que existo dentro de ti, não falas com mais ninguém.
Eu conheço os teus pensamentos. As tuas confusões, os teus desesperos por mim, mas eu sou tu e quanto a isso não podes fazer nada.
Eu sou a tua vida, a tua fraqueza e serei, quando essa hora chegar, a tua morte.
Olhos os rectângulos de luz, na janela, que cortam o ar, com a mesma intensidade, que cortam o meu corpo e a minha alma.
Essa luz é interrompida por sombras de pessoas, que antigamente, paravam á minha porta e entravam para saber de mim. Eu conheço os seus rostos agora como os conhecia antigamente. Conheço os seus desejos, os seus medos. Sei, agora que existem, porque as suas sombras cortam a luz que entra, e também as suas sombras estão no meu quarto.
Na solidão, eu sei que eles existem. Sei que estão lá fora e vivem como sempre viveram, mas não sei, nem posso saber, se sabem da minha existência.
Para sermos sós não é necessário que a solidão nos toque, basta que o esquecimento chegue aos outros.
- És um vazio, um eco distante deste universo. As raízes são fracas e já mais poderás compreender estas palavras.
O teu sangue evapora dentro de ti. As flores que nascem no teu peito são marés turbulentos que fazem encalhar e naufragar os navios nos rochedos do teu coração.
Tornaste-te o corpo das tormentas, para quem queira navegar nos teus trilhos, para quem queira descobrir e conhecer os teus tesouros, que outrora guardavas em ti. O teu tesouro, esquecido nas cinzas da tua alma, será eternamente oblívio.
O excesso de silêncio na minha alma, no meu quarto é interrompido pelo arrastar do ar nos meus pulmões que caminha até a minha boca quase fechada. Um arrastar que rasgar a minha garganta, que desfaz os meus alvéolos. Que me mata muito devagar.
O ar que respiro é veneno; é lume e areia que se desfaz ao largar o meu corpo, mas inevitavelmente provoca danos irreversíveis dentro de mim.
Imagino-me novamente capacitado de pegar na minha caneta e de continuar a escrever. Capaz de pegar na sua fotografia e ver o seu, que agora é o meu veneno. A caneta a correr sobre o papel, os meus dedos a percorrerem o seu rosto por detrás do vidro da moldura.
Agora sei que tudo começou num desses momentos. Num desses instantes em que disse a palavra Amor na solidão e na escuridão do meu quarto. O peso dessa palavra, tinha o peso da minha alam triste.
- As eterna hora, segundos e instantes infinitos que vives na escuridão são momentos de vida lá fora. Sabes que já mais encontrarás paz aqui. É melhor ganhares coragem e vontade se quiseres viver. Mas tu não tem vontade de nada, por vezes apetece-te segurar a caneta e continuar a escrever, outras vezes de te sentares no chão e gritares até que o universo se condense á tua volta, que possas juntá-lo na palma da tua mão cicatrizada e envelhecida, todas as vidas que conheceste, todos os instantes que viveste, todas as tuas coisas, os quadros, os livros, as flores que nunca tiveste, o cão que morreu há muito. Queres voltar a viver mas não tens vontade.
Quando podes, imaginas a linha do horizonte, as nuvens que engolem essa linha. Todas as tuas dúvidas estão lá. As respostas ás tuas perguntas estão abaixo dessa linha, impossíveis de alcançar.
Recordas-te, momentaneamente, das horas que esperaste por nada, sentado naquele miradouro, de onde não vias mais nada que agua e céu, e ainda aquela linha que os separava ou que os une. Onde imaginaste a tua solidão e onde escrevias estas linhas, que o teu corpo, agora escreve. Desejas-te sempre ser só, mas nunca, mas nunca pensaste que pudesse ser assim. Vias o sol se esconder para lá da linha imaginária, aquela linha horizontal onde tudo existe e acontece. Sentias o vento fraco a bater no teu rosto e imaginavas como seria seres o vento. Escutavas os sons da cidade nas tuas costas enquanto que vagueavas o teu olhar pelo vazio. Tinhas que ter cuidado com aquilo que desejavas, porque podia acontecer, mas isso nunca te interessou. Querias ser só. Almejavas saborear a solidão e poderes dizer ás pessoas, quando falassem contigo, que sabias o que era realmente a solidão.
Agora, que não podes falar com ninguém, porque a tua voz desapareceu como a tua vontade, os teus lábios fundiram-se e transformaram a tua boca num tecido denso que a fez desaparecer, agora que o teu corpo consumiu a própria língua, sabes o que é a solidão.
Sabes o que é estar só, provavelmente, sabes o que é o amor e não podes dize-lo porque não podes falar, nem podes te mexer e também porque ninguém se lembra de ti.
Por vezes sonhas e eu vivo nos teus sonhos e sei o quão dolorosos eles são para mim que ainda sinto dor e não para ti que não sentes nada. E sempre que sonhas o sonho é sempre o mesmo.
Da última vez que sonhaste, morreste e feliz com isso, ainda no teu sonho, acreditaste que tinhas chagado ao fim, mas sem saberes porquê, imaginaste uma ponte de luz que atravessava um rio eterno e então caminhaste.
No meio da escuridão, depois da ponte, transformaste-te num fecho de luz e depois num homem. Ao abrires os olhos viste-a, o teu amor, a tua imaginação. Os teus braços seguravam o seu corpo. Viste aquele paraíso que estava na escuridão até tu apareceres. Ela estava na escuridão.
Sentiste o calor do seu corpo junto ao teu. Podias agora voltar a ter uma vida, mas a vingança é um preto que se serve frio. Ela, a mesma da fotografia no canto da mesa, a culpada pelo teu fim, estava só na escuridão da vida. Tu sabias que ias morrer. Sabias, agora, mais que nunca, que tinhas que morrer, bastava imaginares o teu coração a parar de bater.
Imaginaste e o teu coração parou.
Sabes, que no mundo lá fora, algures, num quarto como este, ela está a sentir o mesmo que tu. Sabes que os teus medos são nuvens que se desfazem ao vento e que as tuas dúvidas se tornaram nas tuas certezas.
A tua existência, esquecida por todos, está a chegar ao fim, porque, agora sim, não tens vontade de nada e basta imaginares o teu coração a parar de bater para morreres.
No meu quarto, o quadro era o mesmo, a caneta, sobre o papel, era a mesma, os livros eram os mesmos. Desviei os meus olhos sem força para a janela. O ultimo raio de luz entrou pela janela e cortou o ar na direcção da minha cara. O meu corpo era agora um relevo de pele fundida aos ossos, a minha cara, já não era uma cara mas sim uma caveira coberta de pele. Eu era pó e cinza com forma de corpo morto. O último raio de luz avançava para mim, para os meus olhos, cortando todo o espaço do meu quarto na escuridão. Ao atingir os meus olhos, fechei-os e morri.

Fernando Torga

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