William Shakespeare : A Comédia dos Erros – Ato III - Cena I

Cena I

(Diante da casa de Antífolo de Éfeso. Entram Antífolo de Éfeso, Drômio de Éfeso. Ângelo e Baltasar.)

Antífolo de Éfeso
Desculpai-me, meu caro senhor Ângelo, mas minha esposa fica atrabiliária, quando fora de casa eu me demoro. Dizei-lhe que ficamos distraídos na oficina, a admirar vossa perícia. Na confecção de sua gargantilha, que amanhã lhe trareis sem falta à casa. Ora vede, afirmou-me este malandro que me havia encontrado no mercado, que lhe bati e reclamara, instante, mil marcos de ouro; enfim, que renegara minha esposa e meu lar. Então, borracho, que pretendias ao dizer aquilo?

Drômio de Éfeso
Dizei, senhor, embora o que vos agradar, mas os sinais da sova eu poderei mostrar. Fosse eu de pergaminho e vossa mão de tinta, leríeis vossa firma em letra mui distinta e poderíeis ver o que de vós eu penso.

Antífolo de Éfeso
Penso que sois um asno.

Drômio de Éfeso
Aliás mostrais bom senso, que outra coisa não é quem, por causa de nada, agüenta o dia todo impropério e pancada. Mas se asno puro eu sou, convém terdes cuidado, porque não vos alcance um coice delicado.

Antífolo de Éfeso
Triste me pareceis, meu caro Baltasar; mas ficareis alegre à mesa do jantar.

Baltasar
Com tanta gentileza, é que eu posso esperar.

Antífolo de Éfeso
Peixe e carnes, amigos, esplendem mais à mesa; muita conversa é indício, às vezes, de avareza.

Baltasar
Banal coisa é comida; a boa prosa é rara.

Antífolo de Éfeso
Mas uma mesa escassa a boca torna amara.

Baltasar
A gentileza à mesa é hóspede eloqüente.

Antífolo de Éfeso
Quando avaro é o hospedeiro e o convidado doente. No entanto, se primor não for minha comida, ao menos com prazer vos será oferecida. A porta está fechada? Abri-la manda asinha.

Drômio de Éfeso
Brígida, Madalena, Bárbara, Joaninha!

Drômio de Siracusa (dentro)
Cretino, idiota, alarve, estúpido, demente! Vai-te embora, ou, calado, senta-te ao batente. Por que chamar um bando, assim, de servas tontas, quando uma já é demais? Pensas que me amedrontas?

Drômio de Éfeso
Quem é que em nossa casa ora faz de porteiro? Ficar aqui não pode o mestre o dia inteiro.

Drômio de Siracusa (dentro)
Ora, que vá pescar! Deixe de cretinismo; se não, com o frio os pés apanham reumatismo.

Antífolo de Éfeso
Abre logo! Ou uma tunda esperas que eu te dê?

Drômio de Siracusa (dentro)
Abrir, caro senhor? Falta saber por quê.

Antífolo de Éfeso
Por quê? Para jantar. De fome estou varado.

Drômio de Siracusa (dentro)
Então ide a outra parte; aqui já houve assado.

Antífolo de Éfeso
Quem és, que assim me pões de minha casa fora?

Drômio de Siracusa (dentro)
Drômio, caro senhor, gentil porteiro agora.

Drômio de Éfeso
Roubaste-me, vilão, o ofício e o próprio nome. Aquele me valeu estar morrendo à fome; o outro me rende mais: pancada e insultos a esmo. Mas se tivesse sido, há pouco, Drômio mesmo, por outro nome o teu terias já trocado e desejaras ser mero asno do mercado.

Lúcia (dentro)
Drômio, que barulheira é essa no portão? Quem bate assim?

Drômio de Éfeso
É o mestre, Lúcia; abres ou não?

Lúcia (dentro)
Chegou tarde demais. Vai; dize ao patrão isso.

Drômio de Éfeso
Só rindo muito, oh Deus! De tanto rebuliço. Mas conheceis, acaso, um dito muito certo, de que uma boa sova, às vezes...

Lúcia (dentro)
Oh! decerto! faz esquecer a fome a quem não vê comida.

Drômio de Siracusa (dentro)
Se tu te chamas Lúcia, ó Lúcia, és bem sabida!

Antífolo de Éfeso
Pequena, não me ouviste? Aqui fala o patrão.

Lúcia (dentro)
Já vos perguntei isso.

Drômio de Siracusa (dentro)
E vós dissestes "não".

Drômio de Éfeso
Boa resposta, agora; estamos mão por mão.

Antífolo de Éfeso
Vamos, idiota, abri!

Lúcia (dentro)
Pois não, caro senhor; mas primeiro contai-me a causa desse ardor.

Drômio de Éfeso
Mestre, arrombai a porta.

Lúcia (dentro)
Assim; malhai de rijo.

Antífolo de Éfeso
Deixa, que, após abri-la, a prosa eu te corrijo.

Lúcia (dentro)
Se eu chamar pela guarda, ireis todos de embrulho.

Adriana (dentro)
Drômio, que significa à porta esse barulho?

Drômio de Siracusa (dentro)
Que posso eu vos dizer? Mas estranhar não há de quem tiver visto o que eu já vi nesta cidade.

Antífolo de Éfeso
Esposa, quero ver-te; a fome não me importa.

Adriana (dentro)
Tua esposa, tratante? Afasta-te da porta.

Drômio de Éfeso
Esse "tratante", mestre, a honra vos deixa torta.

Ângelo
Não acharemos cá nem prosa nem comida.

Baltasar
E nós a discutir qual fosse a preferida!

Drômio de Éfeso
Mandai-os, mestre, entrar, que a fome é desabrida.

Antífolo de Éfeso
Há qualquer coisa no ar que nos impede a entrada.

Drômio de Éfeso
Com essa capa, mestre, o frio é quase nada. Nós gememos cá fora, enquanto na lareira, lá dentro, o fogo estrala: é bela a brincadeira.

Antífolo de Éfeso
Vou arrombar a porta e a todos dar o troco.

Drômio de Siracusa (dentro)
Vinde, que eu vos prometo abrir em dois o coco.

Drômio de Éfeso
Fácil é prometer; mas com facilidade não se transforma em ato um soco de verdade.

Drômio de Siracusa (dentro)
Vejo que de apanhar tu tens muita vontade.

Drômio de Éfeso
Vamos, deixa-me entrar; quero ir até à cozinha.

Drômio de Siracusa (dentro)
Pois não, caro senhor; mas só quando a galinha penas já não tiver e o peixe reluzente puder no mar viver sem guelras e contente.

Antífolo de Éfeso
Vou arrombar a porta; arranja uma alavanca.

Drômio de Éfeso
Uma alavanca, mestre? Agora, sim, a tranca no gajo vai saltar e, como o seu peixinho sem guelras, ele passa a bocejar sozinho.

Antífolo de Éfeso
A alavanca! Depressa! Há muita urgência!

Baltasar
Em tudo; amigo, é de mister paciência. Com isso fazeis guerra à vossa própria reputação, chamando para dentro do âmbito da malícia a honra impoluta de vossa digna esposa. A comprovada prudência que lhe é própria, a alta virtude, os anos, a modéstia, valer fazem a seu favor alguma causa oculta para tal proceder, a qual vos foge. Não o duvideis, senhor, mas é certeza que ela vai desculpar-se, revelando-vos o motivo de estar fechada a porta. Deixai que eu vos oriente neste passo. Retirai-vos paciente; vamos todos jantar no Tigre, e quando já for noite, sozinho voltareis para saberdes a razão desta insólita recusa. Se vos dispondes a empregar violência numa ocasião de tanto movimento, hão de surgir, por certo, comentários que, pela turba ignara propalados, a despeito do vosso nome limpo, acolhida acharão por toda parte, até mesmo na vossa sepultura, quando já não viverdes. Que a calúnia, como bens transmitidos por herança, sempre cresce onde venha a encontrar ansa.

Antífolo de Éfeso
Tendes razão; vou retirar-me quieto e, embora a contragosto, hei de esforçar-me por parecer alegre. Ora me lembro de uma donzela de agradável prosa, bonita, espirituosa, algo estouvada, mas, no fundo, gentil. Por causa dessa criatura minha esposa - sem motivos para isso, vos afirmo - muitas vezes tem feito cenas de ciúme incríveis. Vamos jantar com ela.

(A Ângelo.)

Ide a cadeia buscar em vossa casa, pois já deve estar pronta, e levai-a ao Porco- spinho que é onde mora a mulher de que vos disse. Vou dar-lhe essa cadeia, mas que seja só para minha esposa ficar fula. Nossa hospedaria ganhará o presente. Ide, senhor; não percais tempo: há urgência. Já que meu lar se me tornou inimigo, verei se alhures bem-estar consigo.

Ângelo
Pretendo lá chegar dentro de uma hora.

Antífolo de Éfeso
Vai ficar cara a brincadeira... Embora!

(Saem.)

Submited by

Thursday, May 7, 2009 - 23:19

Poesia Consagrada :

No votes yet

Shakespeare

Shakespeare's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 13 years 27 weeks ago
Joined: 10/14/2008
Posts:
Points: 410

Add comment

Login to post comments

other contents of Shakespeare

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 12: When I do count the clock that tells the time 0 6.294 07/12/2011 - 02:13 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 119: What potions have I drunk of Siren tears 0 4.122 07/12/2011 - 02:12 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 118: Like as to make our appetite more keen 0 3.760 07/12/2011 - 02:09 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 116: Let me not to the marriage of true minds 0 3.932 07/12/2011 - 02:07 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 115: Those lines that I before have writ do lie 0 4.071 07/12/2011 - 02:06 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 114: Or whether doth my mind, being crowned with you 0 4.183 07/12/2011 - 02:05 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 113: Since I left you, mine eye is in my mind 0 3.761 07/12/2011 - 02:04 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 112: Your love and pity doth th' impression fill 0 3.743 07/12/2011 - 02:02 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 111: O, for my sake do you with Fortune chide 0 3.587 07/12/2011 - 02:01 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 110: Alas, 'tis true, I have gone here and there 0 4.041 07/12/2011 - 01:59 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 11: As fast as thou shalt wane, so fast thou grow'st 0 4.182 07/12/2011 - 01:58 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 109: O, never say that I was false of heart 0 4.814 07/12/2011 - 01:57 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 108: What's in the brain that ink may character 0 3.998 07/12/2011 - 01:57 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 107: Not mine own fears, nor the prophetic soul 0 4.018 07/12/2011 - 01:56 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 106: When in the chronicle of wasted time 0 4.002 07/12/2011 - 01:54 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 105: Let not my love be called idolatry 0 4.688 07/12/2011 - 01:53 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 104: To me, fair friend, you never can be old 0 4.378 07/12/2011 - 01:53 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 103: Alack, what poverty my Muse brings forth 0 4.296 07/12/2011 - 01:52 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 102: My love is strengthened, though more weak in seeming 0 3.544 07/12/2011 - 01:50 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 101: O truant Muse, what shall be thy amends 0 4.356 07/12/2011 - 01:43 English
Poesia Consagrada/General Sonnet 100: Where art thou, Muse, that thou forget'st so long 0 4.113 07/12/2011 - 01:42 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 10: For shame, deny that thou bear'st love to any 0 4.103 07/12/2011 - 01:40 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonnet 1 0 4.218 07/12/2011 - 01:38 English
Poesia Consagrada/Sonnet Sonet LIV 0 4.484 07/12/2011 - 01:37 English
Poesia Consagrada/General Silvia 0 4.541 07/12/2011 - 01:36 English