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O segundo Milagre - Capítulo VIII

VIII

Continuando a falar sobre o demónio que operara o milagre das curas, o velhote falava na sua rude e simples linguagem.
A coisa era azul esverdeada escura. Tinha o corpo coberto de escamas de cobras do tamanho de uma mão aberta. Tinha quatro patas de elefante com garras de águia do tamanho das foices que transportavam consigo. Sobre o dorso tinha quatro espinhas de peixes-aranha gigantes. A sua cara, imagem que jamais esqueceria fazia lembrar as fuças monstruosas de um crocodilo, mas em vez de espalmada na horizontal era na vertical. Ao mesmo tempo que o ancião falava, unia as mãos para exemplificar como tivesse numa mão uma sopa de haxixe e noutra, uma mortalha para enrola-la.
Todos ouviam atentamente o relato como estivessem a reviver cada momento assustador da visão desse monstro gigante de quatro patas e duas asas vestindo um fato ergonómico feito de milhares de carapaças de tartarugas e espinhos de roseira proporcionais a sequóias gigantes.
D.ª Leonor mantinha uma expressão serena enquanto ouvia tudo isto, contudo falsamente segura. Como granizo gelado do tamanho de nozes martelando pesadamente sobre a sua cabeça, ela desejava que tudo não passasse de uma grande palhaçada encenada por um grupo de camponeses pobres, num ardil inventado por gente necessitada sabendo da presença da sua rainha nas imediações, na esperança de obter da sua beatitude alguns mantimentos, ou alguns míseros cobres uma vez que o uso da troca directa começara já o seu incontornável declínio num mundo renascendo apoiado no poder ignorante dos capitalistas. Talvez fosse só isso. Ouviria a história insolitamente absurda e no final dar-lhe-ia qualquer amendoim faria mesmo que não houvesse qualquer encenação. Devota na sua fé inabalável obscurantista, Leonor resistia a muitos dos ideais profanos do iluminismo renascentista que colocavam a razão no poder do homem terreno e não nas mãos de um Deus omni-tudo, contudo, sabia aproveitar toda a riqueza que seu marido conquistava além-mar com as novas descobertas ultramarinas, ou internamente através da persuasão da punhalada.
Interferência; zzzzz; estática; ZZZZZZZZZZ; problemas de narração;
- E quanto mais perdeu ele devido a sua ignorância colonial e falta de fé no povo que no seu país habitava.
- Olá. Já há tanto tempo que não te manifestavas que pensei teres desaparecido de vez desta narração.
- Achas? Eu sou e serei sempre o outro que está em ti. Nunca te esqueças disso.
- Sim, eu sei mas, a trama não é tua e por isso esclarece lá o que queres insinuar com o que se perdeu ou então deixa-me continuar com os meus botões.
- Está bem ó cromo. E já agora não estudaste história quando andaste na escola?
- Sim estudei. Resigno-me
- E então?
- E então o quê? Desespero.
- Olha, por exemplo: quantas vezes insistiu o genovês para que D. João II patrocinasse a sua demanda pelas terras imaginárias e sem nome das Américas?
- Ah, Ok. Já percebi. Super importante. A narração nunca seria a mesma sem esse detalhe; ironizo. É tudo, ou ainda há mais informações emergentes?
Espero uns breves segundos por uma resposta, mas como não a ouço e para não perder o fio à meada, continuo.
Leonor distribuía como uma santa a riqueza do seu reino por todos os miseráveis do seu reino.
Quanto mais desejava que tudo não passasse de uma farsa barata inventada pelo seu protegido ourives de Guimarães mais acreditava que só podia tratar-se de qualquer coisa real. Era ali que tinha marcado o encontro com a voz um par de dias antes. As suas entranhas remexiam-se como um rio tumultuoso e no seu peito crescia um sinal de pré-aviso, uma espécie de auto-mentalização para o que desse e viesse.
Começa a denotar-se uma certa inquietude nos olhares dos familiares do ancião como se o seu inexistente relógio de pulso estivesse na iminência de despertar gritando que se começa a fazer tarde e que ainda se iam por em trabalhos com o se dono por não estarem ainda a trabalhar e não apresentarem a devida produtividade no final do dia. Apenas a criança mostrava uma agitação diferente infundada nas obrigações do trabalho, mas no dever natural de ser criança e poder pular alegre sob as pedras amaciadas pela longa e constante passagem de água sobre elas. O seu desejo era simples. O que mais desejava era banhar-se de novo naquela misteriosa, milagrosa e tépida água da presa que fora abençoada pelos poderes do demónio
O camponês, velhote, coitado, dava também sinais de partilhar desse mesmo sentimento colectivo, atropelando e misturando agora as palavras do seu discurso obrigando Leonor a ter que desvendar a mensagem que o outro que lhe queria passar como estivesse a fazer as mais difíceis palavras cruzadas. O homem acelerava o ritmo e confundia ainda mais a já embrulhada mensagem:
- Cara bicho, feio, pó ar virada, cabelo não, mas bicos como enxada, castanhas cascas de pinheiro, barba quatro bicos como as foices e olhos de gato horroroso.
A rainha ia tentando traduzir mentalmente para galaico-português o que escutava e baseando-se na sua cultura livresca conseguia ir dando forma ao relato. Tudo ganhava talhe no seu entendimento, contudo quanto mais ouvia mais tudo lhe parecia impossível e até mesmo dantesco; o que ele descrevia encontrava-se apenas em contos de fadas e fadas essas que nem sequer existiam em Portugal.
Continuava como uma tradutora experiente a sua tradução directa ao mesmo tempo que cogitava sobre todo aquele imaginário maravilhoso; Tem o aspecto terrível de figuras que já vi; pele de réptil e crinas feitas de cornos de boi com uma coroa de três espinhos por cima da testa; mais dois em cada bochecha; sobrancelhas à Álvaro Cunhal, feitas de escamas de crocodilo enquadrando magníficos dourados e redondos olhos de cobra com íris pretas rectangulares; narinas duas vezes maiores que as das vacas charolesas; boca de dobermann com dentes de tubarão…
O velhote leva-lhes uns segundos de avanço no diálogo quase imediata, tão grande era a sua experiência em falar com o seu povo em todos os recantos escondidos neste país tão pequenino, mas tão grande na vontade – quando mija um português, mijam logo dois ou três. Leonor continuava a interpretação traduzindo o melhor que conseguia o que outro atropelava:
- Asas morcego, muitas, muitas; rabo chicote gigante; fera; demónio; bicho.
Em pouco mais de um minuto, um silvo leve de suspiro anunciava que a descrição da coisa tinha chegado ao fim. Logo de seguida também Leonor concluía o seu raciocínio:
- Envergadura de asas equivalente a um quarto do abraço do Cristo Rei que mira a sobranceira Lisboa lá dos lados de Almada. Uma cauda proporcional.
O silêncio absorveu todo aquele local por uns instantes como uma esponja sorve um pouco de água entornada.
Leonor fitou aquela gente e suspirando em adágio reflectiu sobre tudo o que acaba de ouvir:
- Não creio que seja possível, mas o que esta gente descreve é sem dúvida um dragão.
Todo o seu corpo estremeceu com o susto daquela imagem. O meu encontro é com um Dragão? Terá pensado. De qualquer forma, não querendo demonstrar o seu medo e seu espanto perante a gazeta natural humana que é muitas vezes o cochicho do povo, não teceu quaisquer comentários limitando-se a indagar serena e cautelosamente com uma expressão séria de investigadora policial como quem pede uma informação só por perguntar, como quem fala apenas para passar o tempo numa espécie de conversa de treta:
- Muito bem. Estou a ver. Então esse demónio estava a beber aqui na presa quando vós estáveis a passar. Foi isso?
Enquanto todo o grupo miserável acenava afirmativamente com a cabeça a voz do ancião confirmava positivamente a pergunta.
- E água nunca esteve assim quente e com este cheiro?
- Pois, sua alteza. Muitos sois vir aqui. Nunca lo emos visto.
- E a criança tinhas umas manchinhas no corpo, ou dores, não era assim?
- Pois.
A conversa começava a ganhar corpo de interrogatório policial e começa a crescer uma atmosfera inquieta de mal-estar no aspecto e nos modos dos camponeses como fossem ainda receber uma valente sova real por estarem a inventar tamanha mentira. Leonor percebeu isso mesmo e a expressão ligeiramente carregada de inquisidora que mostrava transformou-se naturalmente num sorriso reconfortante e ameno ao mesmo tempo que fixou que fixava agora os seus olhos nos da criança. Dirigiu-se-lhe ao mesmo tempo que lhe estendia os braços num gesto de vem cá meu pequenino fixando de revés o ancião que tinha idade de ser quase seu avô e cujo invisível aceno de confirmação permitiu que a criança avançasse:
- Aproxima-te meu querido, não tenhas medo.
Com o consentimento de seu pai moveu-se sorridente tão comedidamente quanto pode um infantil na direcção daquela senhora. A rainha ajoelhou-se até estar praticamente à sua altura e com o tom certo, equilibrado, terno e quente de uma mãe perguntou-lhe tão baixinho como quem segreda qualquer coisa muito pessoal:
- É verdade tudo o que o teu paizinho contou meu querido?
Não foi sequer necessário esboçar qualquer resposta, pois essa estava a ser dada através do brilho da sua inocência que se reflectia puro claro e transparente nos seus olhos. Nos olhos de quem não conhece ainda artes da mentira. Como perguntar a uma criança se tem cocó e ela responde constrangida sorrindo que não.
Leonor, ao mesmo tempo que reflectia interiormente, devolveu-lhe o mesmo sorriso de entendimento para de seguida, ainda ajoelhada, dirigir de novo o seu olhar a todos os restantes e voltar um pouco mais a cabeça na direcção da sua comitiva como procurando nas formas rugosas das árvores avistar a silhueta dos seus guardas e do seu capitão. Lá estavam eles a menos de trinta metros dissimulados atrás de árvores com metade do diâmetro do seu corpo julgando-se escondidos. Leonor sorriu e levantando-se delicadamente tentando não afugentar o grupo de pardais assustadiços que tinha á sua frente fez um ligeiro aceno de mão na direcção do capitão da guarda exigindo a sua presença imediatamente.
O sol dourava já aqui e ali todas as matérias e uma súbita brisa mais fria agitou as copas do arvoredo como gritando aos camponeses que engoliam saliva em seco que era agora hora de levar umas cacetadas ou pior ainda.
O capitão chegou com o seu aspecto feroz de decapitador afagando quase diabolicamente o punho da sua espada enquanto os outros o imaginavam já cravando metal nas suas entranhas. A rainha correu o pano da imaginação e levantando um pouco o queixo instruiu o seu protector:
- Mande dois guardas acompanhar este povo até ao seu local de trabalho e mande-os depois ao encontro do seu patrão para que o informem que por vontade da rainha de Portugal e para tratar de assuntos pessoais, tiveram os mesmo que trabalhar um pouco menos neste dia. Antes dê-lhes alguma comida e roupa que transportamos para esse propósito e agora deixem-me a sós. É uma ordem.
Viriato que acompanhava sempre Leonor em todas as deslocações sabia o que fazer e com cara de lobo mau que a todos vai comer, mas controlado pelo poder do bem, fitou a vara de porcos e como quem encaminha os suínos de volta à pocilga esticou o braço na direcção do carreiro que entroncava com o caminho real. E num suspiro milagroso de quem conseguiu viver mais um dia sem apanhar uma tareia todos os camponeses baixaram a cabeça em sinal de subserviência e saíram dali de fininho como quem caga em retrete pública sabendo que tem outro cagão na retrete mesmo ao lado.
Leonor observou toda aquela gente indo embora cabisbaixa e aparvalhada como estivessem a abandonar a presença de uma santa misericordiosa e ofereceu um sorriso sincero de compaixão na direcção de todos, sorriso esse, apenas correspondido por outro maroto do infante imaculado, para logo de seguida mergulhar o seu pensamento nas profundezas das suas dúvidas que se encontravam muito além da superfície daquela misteriosa, efervescente e pestilenta presa de água.
Eram nove horas da manhã do dia 22 de Maio de 1484. Os melros esgaravatam o chão em busca de minhocas, Ou rouxinóis insultavam-nos ao longe por plágio. Todo o chão da floresta ganhava vida e estalava ao peso dos animais. O céu estava limpo e todo o universo abria a boca na preguiça dos dias. Leonor continuava ali como fizesse parte integrante daquele meio natural. Na sua mente o silêncio era total e o que via surreal.

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quinta-feira, julho 16, 2009 - 09:08
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