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Por amor à Virgem

A dois graus da linha equinocial, toparam com calmaria podre, o que os deixou três semanas quase à deriva. Apesar da indústria com que faziam a pesca, nada lhes dava aos anzóis ou às redes. A fome, que já os rondava, assaltou-os a ponto de fazê-los devorar tudo o que de couro a bordo havia.
Simeão figurava: se era por vontade de Deus tocar-lhes semelhante bocado, que sobre eles o olhar não tardasse novamente a lançar, sob pena de todos à míngua perecer.
Não bastasse tal, também a peste sobre eles grassou. E com tão desmedido ímpeto que logo quarenta homens jaziam no convés, muitos já mortos, outros amesquinhados ou moribundos.
Nesse transe, Simeão apegava-se à Virgem, de tal sorte tinha seu amor a ela enfrascado. Por lugar de naturalidade tinha uma aldeola perdida nas montanhas do interior de Portugal. Ali tencionava construir, com o dinheiro que tinha certo amealhar naquela viagem, formosa ermida, em homenagem à Virgem Mãe de nosso salvador.
Ao fim do vigésimo oitavo dia, suas preces se ouviram e foram servidos de bom vento, o que os fez a primitiva derrota retomar.
Mas rondava-lhes o temor de alastrar-se a peste e dar cabo de toda a tripulação. Houve por bem o general para a primeira terra com que dessem a vista fazer transportar e lá deixar à sorte os moribundos e os estropiados pela doença. A Simeão e a mais três portugueses coube a tarefa. Os mortos, em número de quarenta, foram atirados ao mar, os demais levaram na chalupa às terras que semelhavam imensa ilha.
Na praia pousaram os que lá deviam morrer.
Prontificavam-se a voltar, quando Simeão lhes disse ser de bom proveito na floresta se embrenhar e darem-se à veação, já que a bordo grande falta lhes fazia a carne de alguma caça. Ponderaram os outros ser ainda de maior conveniência não correrem o risco de perder a maré. Aferrado à sua intenção, Simeão deles se separou, garantindo estar de regresso antes da preamar, e na mata entrou.
Não demorou a se aperceber de seu erro.
Muito mais intrincado do que lhe tinha parecido da praia era o grande mato. Caminhada meia milha, só viu árvores altas, nenhum palmito ou planta que tivesse serventia. Menos qualquer pássaro ou outro animal. Intentou voltar. No chão, a espessa cobertura de folhas desfizera-lhe o rastro. As copas das árvores tampouco lhe permitiam ver o sol, e ele não tinha, dest’arte, ponto algum para orientar-se.
Enfim, perdera-se.
Quando de novo atingiu a praia, já se fora a maré e a chalupa. Nem de longe, em alto mar, conseguiu vislumbrar a silhueta da capitânia. Tinha a certeza de que, azafamados que eram no navio a garantir a própria sobrevivência, da costa não se aproximariam para procurá-lo nem lhe mandariam alguém com esse intento.
Estava, pois, só, em terra que não sabia qual fosse nem de que espécie seriam seus habitantes.
Aquela noite ele a passou na praia. Não procurou abrigo na mata, com justo medo de servir de repasto às feras que na certa por lá a desoras perambulariam.
No seguinte dia, assaltado pela fome, serviu-se dos caranguejos que do mar saíam para os abrolhos à flor d’água. Mas a sede não alcançou mitigar. Não havia por ali qualquer olho d’água ou riacho, e na mata quaisquer frutos ou plantas de cujo sumo pudesse valer-se.
Deitou então caminho pela mata, à cata de uma senda que a algum lugar habitado o pudesse conduzir.
Nem bem três milhas adiante, deu com uma clareira e a margeá-la algumas cabanas. Formavam um círculo, dentro do qual viu não poucas mulheres e crianças. Eram selvagens que lá tinham assentado sua morada.
Pôs-se então a braços com a dúvida de saber se direito aos da aldeia se dava, com o risco de ser por eles molestado, ou se devia evitá-la e dar-se à gente que lhe merecesse maior fé.
Não tardou em ser despertado pela bulha que a um de seus flancos se fazia.
Mal teve tempo de se voltar e um rapazote, aos gritos, sobre ele se lançou, pronto a romper-lhe a cabeça com o tacape. Esquivou-se e, já à mão a espada, aparou o golpe com uma estocada que o levou à terra. Do mesmo modo avançou um velho, que ele também pôs ao chão.
Todavia, baldado era continuar a defender-se. Com horríveis gritos, uma chusma de selvagens sobre ele abateu-se. Depois de desarmado, viu-se a pique de ter o corpo varado por dezenas de lanças, e os miolos a voarem-se-lhe pelos golpes dos tacapes. Em tal aperto, não fazia mais que gritar: “Valha-me a Santa Virgem!”, e logo ao brado acrescer: “Sou português! Sou português!”
Já de todo desesperançava, certo de ser aquela a hora de entregar a alma ao criador, quando um deles em linguagem portuguesa, indagou se dizia a verdade ou dava-se a invenções para salvar-se.
Respondeu que, em nome da Santa Virgem, dizia a mais pura verdade, que mais merecia morrer por mentir à mãe de seu deus que pelas mãos deles.
O outro convenceu-se e disse aos demais o que tinha acabado de ouvir. Depois explicou-lhe que tinham-se assim tão raivosos porque o rapazola que ele fizera morto era o filho do pajé, e era o pajé o velho a quem dera a mesma sorte. Sem ele, tinham ausente quem lhes predizia o futuro nas guerras e o bom ou mau crescimento das raízes na plantagem do milho e da mandioca.
Reconheciam, porém, o valor com que ele tinha se batido. Por isso o poupariam e porque era da mesma raça dos que com eles guerreavam as tribos inimigas e os ajudavam a matar os que depois iam devorar.
Puseram-se rumo à aldeia e com eles Simeão. Lá, aquele que lhe falara acolheu-o em sua cabana. Ficou sabendo por ele ser aquela uma grande ilha, rica em pau-brasil.
Disse ainda ser mameluco, criado na aldeia junto aos de sua mãe, vendido depois aos portugueses que na parte norte da ilha, confrontados com o mar, tinham uma povoação. Nela ficara largo tempo, até fugir por não mais suportar ser batido e tratado como escravo pelo seu dono.
Mais interessou-se Simeão pela povoação. Disse-lhe o outro estar a um dia e meio de jornada. Simeão dispôs-se a ela se dirigir. Para tanto, precisava de um guia, mas o outro a isto se recusou. Tinha medo de ser apresado e castigado pelo seu antigo dono.
Por mais que insistisse Simeão, mais ele se deixava tomar pelo pavor de se ver de novo agrilhoado.
Indicou-lhe dois índios que até lá o levariam e logo na manhã seguinte partiram.

O que o mameluco chamava de povoação não passava de quatro casas e uma capelinha, dispostas ao redor de um engenho de cana.
Pedro Novais era o seu dono. Natural da cidade de Cintra, quedava-se naquelas terras há dez anos. Vivia do engenho e do comércio que mantinha com o pau-brasil e com quantas coisas raras por ali houvesse. Fazia escoar tudo ao mar, tão logo algum navio por lá aferrava, no porto seguro e de águas calmas que ali havia. Mantinha o dito comércio e a plantação dos pés de cana, à custa do trabalho de mais de três dezenas de índios, aprisionados e mantidos à sua ordem por um feitor.
Soube dele que os da tribo que o tinha acolhido só se prestavam ao trabalho a ferros e à chibata. Preferiam dar-se à guerra, à dança e à cauinagem. Os das outras tribos eram-lhes iguais e sempre lhe faltavam braços para as menores tarefas.
Simeão deu-lhe notícia do mameluco e ele se mostrou ansioso por reavê-lo, já que lhe fazia falta e tinha dado não poucas moedas de ouro pelo fujão.
Pedro Novais também deitou olhos sobre os dois índios que com ele estavam e só faltou lhes botar preço para que ele ali os deixasse, já que estavam à sua ordem.
À noitinha, antes da ceia, foram à missa, na pequena ermida. Pedro Novais a construíra. Era de interior pobre, as paredes nuas, sem nelas a imagem de qualquer santo, apenas um grande madeiro naquela que dava frente para o público, mas igualmente sem a imagem do Salvador. Não havia bancos nem púlpito do qual se fizesse a pregação. Aquele ao qual isso cabia apenas para a frente deles se dirigia e dava-se à prédica.
Os portugueses do lugar, em número de quinze, colocaram-se de um lado, com algumas de suas mulheres. Do outro, ajeitaram-se uma vintena de índios convertidos. Pedro Novais, com fervor, se encarregou da pregação e aos portugueses coube a cantoria dos hinos.
A seguir, ceou Simeão na casa de Pedro Novais, que lhe cedeu um quarto para passar aquela noite e as demais que ali ficasse, como seu hóspede.
Simeão teve um sonho, no qual a Virgem lhe apareceu vertendo sofridas lágrimas.
Já lá se iam oito meses contados de sua promessa e até agora nenhum prego da prometida ermida se tinha pregado. Vinha a Virgem cobrar-lhe a promessa, que se a não pudesse cumprir, não a fizesse.
Naquele mesmo dia botou preço nos dois índios e passou-os às ordens do feitor. Recebeu por eles em moedas de ouro o equivalente a um sino, sem o badalo embora, o que muito o alegrou.
Pedro Novais, vendo-o assim animado e cismando não ser tão só pelo recebimento da quantia, perguntou-lhe. Simeão, que já nele confiava, contou-lhe. E firmou que a ermida por ele prometida seria muito mais rica que a da povoação.
Pedro Novais abismou-se de tamanha adoração.. Fê-lo descrever com minúcias a capela que desejava erguer e calculou em pouco mais de noventa mil moedas de ouro construí-la. Fez-lhe os cálculos seguintes:

– sino sem badalo = 4 indiazinhas = 400 moedas
– sino com badalo = 6 indiazinhas = 600 moedas
– púlpito = 11 guerreiros = 3.000 moedas
– alicerces = 26 índias jovens + 24 índias velhas desdentadas = 1.500 moedas
– teto, com ornamentos de ouro = 29 índias semivirgens catadoras de piolho = 4.000 moedas
– paramentos dos padres = 33 indiozinhos púberes =7.000 moedas
– salário dos padres = 62 indiozinhos impúberes = 20.000 moedas
– espantadores de morcegos = 3 índios velhos e caolhos = 500 moedas
– imagem da Virgem = 81 guerreiros castrados, chocalhadores de cabaças grandes = 49.000 moedas
– acendedores de velas = 14 índios = 2.500 moedas
– apagadores de velas = 10 índios = 2.000 moedas
– coroinhas = 2 índios com piolhos + 2 índios sem piolhos = 500 moedas
– putos para o coro = 10 indiozinhos = 2.000 moedas
Comissão = 90 índios jovens e livres de coceira nas partes
Total: 399 índios 92.500 moedas d’ouro

Explicou a seguir como alcançar os índios e o montante do dinheiro. Dali a quinze dias no porto aferraria um navio negreiro, com 200 homens bem armados e adestrados no apresamento a índios e negros da Guiné. Cabia-lhes negociar com seu comandante.
A tribo onde Simeão se achava tinha uma população de 450 brutos. Urdiriam uma armadilha para tê-los à mão. No seguinte consistia: Simeão regressaria a eles, levando-lhes novas de um ataque que lhes preparava uma tribo rival. Esse intento tinha sido descoberto pelos portugueses, que se punham em seu auxílio, a fim de que pudessem surpreender seus inimigos, derrotá-los e comê-los, desde que estivessem todos os guerreiros, na madrugada do décimo sexto dia, na garganta que ligava a aldeia ao mar. Isto feito, as tropas os apresariam e seriam levados à nau.
Simeão teria suas moedas e ele sua comissão de brutos, que estariam em seu engenho, e nas lavouras que em torno dele mantinha.
Aquela noite, a Virgem de novo apareceu a Simeão. Trazia um sorriso beatífico, o que muito o contentou.
No seguinte dia, partiu de volta à aldeia. Os índios por ele vendidos acompanhavam-no. Tinham acreditado na malvadez do projetado ataque à aldeia e, segundo Pedro Novais, muito lhe serviriam de apoio na persuasão dos demais.
Assim tudo se deu. De tal modo ficaram agradecidos por ver no aviso a oportunidade de matar os inimigos que logo fizeram os preparativos para a guerra e no dia azado foram ter às paragens adredemente indicadas. Lá, os emboscados os surpreenderam, deram morte aos que resistiram, apresaram os demais. Não se lhes escapou nem as mulheres, velhos e crianças que na aldeia se quedaram. Parte dos portugueses para lá se desviou, passaram todos em armas e queimaram as cabanas.

Simeão deixou-se quedar na ilha, no aguardo de uma vela na qual pudesse tornar a Portugal. Em nenhuma das noites deixou a Virgem de lhe aparecer, sempre a sorrir-lhe beatífico sorriso, o que só lhe fazia aumentar a ânsia de à sua aldeola tornar e dar-se por inteiro à construção da ermida.
Foi o que alcançou, seis meses depois, ao embarcar num galeão de bandeira holandesa.

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sábado, julho 24, 2010 - 23:14

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