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Produção do Tempo - Terceiro Dia

Saio para a rua. Saía para a rua. Preciso encontrar o que não encontro ou que não vou encontrar. O que ele não vai encontrar e sabe que não vai e saiu do quarto para rua, de um quarto que se aluga por um mês, numa casa indistinta, ao fundo de uma rua indistinta de uma cidade indistinta. Ele ou eu. Não sei, quem saiu? Ele ou eu, não sei quem escreve, ele ou eu. Se for eu, escrevo que ele saiu, se for ele, diz que eu saí. Não sei. Quem escreve, quem não escreve, quem é ele, quem sou eu, de que se escreve, para que se escreve, para quem se escreve, o que se escreve, o que se escreve quando se escreve? Escreves-me ou escrevo-te? Escrevendo, escrevo-me, escrevendo-te, escreves-me.
Sai para a rua, procura o que queres procurar, procura o que não queres procurar para não encontrares. Lembro-me. Lembro-te, só se encontra o que se procura, nem a ti próprio te encontras se não te procurares. Mas não quero procurar a minha intimidade, talvez por agora. Saio para sair de mim, saio da casa para a rua para encontrar o exterior de mim fora do interior. É possível. Talvez procure um objecto, um estado, uma sensação, um sentimento, uma palavra, talvez procure alguém, alguém indistinto na cidade indistinta, alguém que vi, alguém que verei, talvez procure quem nunca verei. Um objecto ou um lugar. Ruas, avenidas, alamedas, jardins. Saíste para a rua à procura de ti, não, saíste para encontrar uma possibilidade, uma possibilidade de ti, a tua memória, a alma, uma árvore, pensa, um cedro, um pinheiro, um abeto, uma acácia, flores, tulipas, lírios, rosas, ou nomes, insisto, saíste com a ideia de abraçar uma árvore, uma árvore ou um cão, olhar a tristeza de um cão vadio, sair e abraçar um cão, uma pedra, um olhar, abraçar o abraço gigante de um bosque. Ou o mar, ver o mar, abraçar o mar. Saio e abraço a luz de um poste ou o frio ou um deus que não existe ou a solidão que existe ou a melancolia do entardecer, abraçar a certeza e a dúvida, abraçar uma ideia. Sais e abraças-te enquanto caminhas para fora de ti, abraçar todas as sombras rodopiando pelo espaço do teu próprio delírio. Sais e queres abraçar uma pedra, aquele objecto ao fundo da rua diluído na luz. E na obscuridade. Como quando se escreve, não sabemos para onde vamos.

Sais e queres. A vontade. Começo com a filosofia, a filosofar, os filósofos da vontade.

Não vejo ninguém, não há ninguém para abraçar. Todas as árvores e todas as pedras de todos os jardins. Este dia, desde cedo, pálido vai desaparecendo. Talvez se procure um sentido, o sentido, talvez se procure o riso. Queres rir, sei, saíste à procura do riso. Será o esquecimento? Une as palavras, como Kundera, o riso e o esquecimento, o livro do riso e do esquecimento. Reparo, repara, alguém vem, pergunto-lhe, perguntas, vais perguntar, pergunto a alguém qual a razão de eu ter saído, aproveito e pergunto o que procuro, o que procuras. Pede-lhe que te esclareça sobre o sentido, apenas sentido, não um sentido, há muitos sentidos, muitas perspectivas de sentido, o sentido, interroga-o sobre o sentido. Não uses a ironia, esquece o filósofo, ou melhor, usa a ironia, a tua melhor ironia, o riso, o tal riso, o sarcasmo, os dentes afiados, queres morder a verdade. Lembra-te do outro filósofo, quando fores ao encontro marcado com a verdade, não te esqueças de afiar a lâmina. Estas palavras duras são as mais sensíveis, as mais nobres, como a verdade nos tem desgastado, o que ela foi capaz de fazer de nós! Esquece tudo o resto, mesmo o nevoeiro que nos perturba, nós que queremos ver os olhos de quem nos vai narrar o sentido da vida!

Aproveita a presença de uma máscara para encontrarmos qualquer coisa que dê sentido a estarmos aqui, aqui, não, não me refiro ao que pensas, estarmos aqui neste anoitecer rápido contra o vento, de estarmos aqui prostrados no frio de uma avenida sem nome, aqui para onde viemos curiosos de uma procura de nada, melhor, do nada. Pode ser que não saiba, não saiba responder, não queira responder, responda sobre o sentido sem sentido, diga o que não queremos ouvir, aquilo que menos gostamos de ouvir. Pode ser. Não sabemos. Pode ser que ele próprio nos venha perguntar sobre o sentido, que tenha saído para a rua para procurar algo, abraçar algo, uma teoria, o suporte de uma ideia, até, como vimos, é possível ter saído para abraçar um cão, uma árvore, um poste de iluminação. Abraçar uma ideia, uma teoria, uma crença, a verdade, o paraíso, a eternidade, deus, as ilusões, a felicidade.
É isso, veio pela noite com passos débeis preocupado com a solidão da felicidade. Deslumbra-lhe o rosto, aquela alegria indisfarçável que lhe cintila nos olhos, observa como agita os braços, os seus dentes brilham na escuridão. A roupa é clara como convém. Veio abraçar a felicidade, agradecer-lhe, sim, ele sabe o sentido, sobre o sentido, ele encontrou o que procura. Quer retirar à felicidade a solidão. Ou à solidão a felicidade? Mas, quem é ele? O que sabe do sentido da vida, saberá ensinar-nos novas crenças, lembrar-nos as crenças que perdemos, lembrar-nos das crenças que não queremos mais? Falar-nos sobre as ilusões? Ainda tenho os apontamentos desse tempo em que aprendemos ilusões, decorámos ilusões, copiávamos nos testes para termos boas notas nessa universidade de ilusões. Éramos alegres! E esquecemos tudo, embora tivéssemos tido o melhor ensino, embora tivéssemos sido os melhores alunos. Doutores de ilusões. Haverá outras, teremos de aprender.

Grita para o fundo da rua, queremos ilusões. Grita pelas ilusões. Grita a plenos pulmões, talvez elas nos ouçam, venham até nós, as ilusões.
Nós, os amantes de ilusões!

Outras crenças, outras certezas, outras verdades, ou, finalmente, a verdade, que não desgaste, que não procuremos mais, a verdade oferecida, a verdade como um prenda, embrulhada em folha de prata e laço de cetim. Imagina uma prenda assim. Ah, o encanto de desembrulhar um prenda assim! A Verdade, a verdade em si mesma. Era isso que procuravas, era isto que procuro, saí ou saíste para ouvires a verdade, numa noite comum, saí para esta chuva álgida, para este diálogo, sim, do manto da noite irrompe a beleza. Esta noite não me escurece, me ilumina, volto à minha ilusão, às minhas crenças, à luz, ah, a luz, devorando a escuridade, a certeza de nunca mais me corroer nas incertezas. Quando tudo parecia perdido, eis que numa noite comum, noite como todas as noites, comum, saio, ou sais, saímos, à procura do que nunca soubemos, à procura de encontrar, à procura de encontrar o nada, encontrar nada…dissemos, dissemos, ou disse, disseste, abraçar um cão, um olhar, sei lá, até o amor, acreditar no abraço de um amor, ah, o amor, abraçar uma árvore e uma pedra, chorar o choro daquele olhar sempre triste de um cão…

Lembrei-me de Godot…
Como Godot, não, não como Godot, ninguém veio, eles, os que o esperavam ainda o esperam, ainda lá estão e Godot não irá e eles esperam…

Repete: procurámos o nada e encontrámos tudo, que poderíamos ter de melhor na moldura do nosso destino!? Vamos perguntar a esse ser na névoa, a ele que se aproxima dos clarões da noite, como é a verdade. Teremos de ser subtis, delicados e felizes. Aquece o teu melhor sorriso, esmalta o teu traje, endireita a tua coluna, o momento é solene, divino, a verdadeira manhã nascerá amanhã. Já sinto os cânticos da aurora, as águas das fontes serão mais puras que o cristal, verás todos os amantes unidos para sempre…deixa-me dizer ainda, os sonhos deixarão de ser sonhos, a realidade será o grande sonho…deixa-me dizer ainda, deixa-me dizer o que não sei, esta alegria me atordoa, saímos e estamos aqui…somos aqui os autores do nosso destino…

Como imaginas a verdade? Poderemos falar de cor, de cheiro, de forma, de sabor? É tão importante a forma! Será que se corrompe, que se degrada, que é mutável? Não devemos confundir as verdades com a verdade. Esse foi o problema. O momento é da verdade, absoluta, incorruptível, imutável, solução para nós que saímos à procura de qualquer coisa para encontrar. Lembra-te, saíste, saí, saímos para encontrar o que procurávamos sem saber que procurar, procurar qualquer coisa para encontrar qualquer coisa, procurar nada para encontrar nada. Assim chegamos aqui, um lugar como outro qualquer, tão importante como outro qualquer. Não podemos ir sem encontrar nada. Não vou, não vais, não vamos, não vão, eles não vão daqui, deste lugar sem importância, com as mãos vazias. Só regresso ao quarto arrendado por um mês depois de encontrar o que procurava, nada, a verdade é o nada que procurávamos. Tem esperança, estamos aqui tão próximos, agora tudo é possível.

Ninguém se aproxima pela névoa, esta hora, ao vento recôndito da noite, noite, ninguém se aproxima na névoa. Escuta, escutamos o silêncio, a eloquência do silêncio, escuta, escuto, escutamos, eles escutam o meu diálogo, este silêncio em névoa me silencia, da noite de névoa pelo silêncio, a tua eloquência, a minha eloquência…rio-me de mim, ah, a beleza do nada, a única forma de aceitar a verdade, a sua completa e única vacuidade.
Não temos ninguém a quem perguntar o que procurávamos. Ninguém para nos dizer a verdade.

Sabemos, nós dissemos e encontrámos. Dissemos a nós, encontrámo-nos.

Olho as árvores, sabes, são elas que me olham como o mar me olha, esta noite me despertou para o riso e o esquecimento. As árvores riem, como o mar, os jardins, os cães. Se choram por que não rir? Rio-me para as árvores, os cães, o mar.
Esquecermo-nos de nós, desligar a máquina, esquecer o que tem de se esquecer, sermos esquecidos por que temos de ser esquecidos, desligar a máquina. Quando desligas a máquina, os circuitos neuronais? Ligar por vontade de viver o que se viveu ou o que quase se viveu. Quando desligas as sinapses, cortas as dendrites e as telodendrites, os axónios? Quando vais esquecer tudo? Saíste para esquecer, procurar o esquecimento em cada rua e alamedas e bosques e praças e edifícios e candeeiros públicos, olhares a degradação das coisas em contentores de lixo e lixo e lojas e festas e paixões e jornais e cafés e jantares e amores e bebedeiras e alegrias e alergias e tristezas e angústias e mulheres que passeiam e veres tudo isto para esquecer e rir e voltares com vontade de rir e esquecer. Voltar às alamedas e avenidas e abraços e cães e chuva e o ódio e ruas e o arrependimento e a vaidade e o sofrimento e a fraternidade e a solidão e os vagabundos e o pão podre que comem com alegria e a distância e o que se disse e o que se não disse e a coragem e o medo e as circunstâncias e a dor e o ciúme e os aniversários e o dia da nossa morte e a morte e a esperança e o futebol tão sério como a morte e a esperança e os gelados de verão e o absurdo, a existência, a verdade, o nada…

Procurar o nada ou a verdade, o mesmo.

Sabes regressar? Para onde vou, para onde vais, eles vão?

Quando voltar a sair, prometo, vou abraçar um cão.

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sexta-feira, janeiro 16, 2009 - 20:58

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