OS GÉMEOS - 27

.

 

(continuação)

 

— Mataram o meu Zeca!... — Foi o que Zirá murmurou, com o olhar congestionado e a voz embargada pelo choro, expressão macilenta de amedrontamento a auscultar a reacção de mameselle Louise, como se a sabida pusilanimidade do falecido, que desencadeara a tragédia, fosse agora também uma ameaça que poderia abater-se sobre si. — Eu sei... Mataram o desgraçado do Zeca.

— Que tolice, mulher! Foi um acidente. O carro ainda está lá... todo espatifado! Você não quer arranjar sarilhos, pois não?...  Então não volte a dizer essa tolice.

— Eu só disse a si, mameselle... mas foi...

— Nem a mim deve dizer. Se alguém começa a propalar isso! Ninguém teve culpa de ele ser impulsivo e desastrado. Infelizmente, casos como este são demasiado frequentes nas estraditas deste país. Vêm por aí fora, mal sabendo conduzir, a toda a velocidade, milhares de quilómetros sem repouso, inconscientes do perigo, e acabam por se matar e, ainda pior, muitas vezes arrastam outras vidas na sua desgraça.

— Tenho pena dele...

— O Zeca só vinha trazer-lhe complicações. Aqui, a terra dele, era um sítio onde era lógico que a polícia o haveria de procurar. Isto de fugir da prisão tinha de dar mau resultado.

— Viu-o? Eu não tive coragem de ir lá...

— Descanse. Eu e sô Jão estamos a tratar de tudo, e a Amélia também. O funeral será amanhã, mas é bom que até lá não saia dessa cama. Aliás, você está enfraquecida de mais e precisa de entretanto recuperar ânimo.

— Tenho medo, mameselle Louise...

— A morte é assim. Um dia qualquer é a nossa vez. Se nos deixamos apoderar pelo temor, estaremos a denunciar-lhe o nosso amor pela vida e isso pode servir-lhe de tentação para nos levar embora. Caramba! O Zeca conseguiu pôr-me a dizer coisas lamentáveis! Ora vamos lá a mais uma boa dose de calmante...

— Mameselle Louise... Por favor, peça desculpa ao Dr. William por eu ter aparecido lá a incomodá-lo...

Àquela hora William já telefonara a inteirar-se do sucedido e a saber como se encontrava Zirá. Custara convencê-lo a não ir logo para Lameira Grande, e para isso tivera de usar de muita subtileza. As relações dele com Zirá eram discretas mas, mais boato menos boato, quase inevitavelmente predizíveis.

Além disso, Louise detestara a coincidência do desastre que vitimara Zeca ter sucedido tão perto de Lameira Grande. Apressara-se a colaborar para que as formalidades legais pudessem ser realizadas com celeridade, e por intermédio de Amélia o enterro tivesse lugar com dignidade mas sem relevância, e estivera sempre alerta para se aperceber de eventuais detalhes susceptíveis de concitar a sua melhor avaliação do acontecimento. O lugar tinha cada vez mais gente forasteira a viver por ali, mas nem por isso uma atoarda malévola deixaria de ser inconveniente para quem fosse envolvido no passado litigante de Zeca.

Tinha outras razões para não estar tranquila. Como veio a comprovar.

Zirá, psicologicamente, quebrou de uma forma espantosa, e, desde o pranteado enterro, transformou-se numa lamentosa carpideira da triste sorte do marido, com sinceridade tão temerosa de remorso que nem era justo achar-lhe hipocrisia. Sentir a morte tão perto arrasara-lhe a consciência pecaminosa, e daí a deixar escapar a leviandade ingénua da sua inexplicada intuição poderia apenas mediar um instante de insensatez. Contrariando Louise, que não foi capaz de a demover, abandonou o trabalho, e, decisão nem sequer abordada, deixou de ir visitar William. Graças que, um mês depois, abalou para casa dos pais, em terra distante.

Amélia não tinha qualidades para suceder com êxito à cunhada, em nenhuma das funções, tanto administrativas, nos negócios da ECLG, como afectivas, junto de William. Mesmo assim Louise não recusou o seu oferecimento para aqueles, nem hesitou em criar circunstâncias que, por espontaneidade, pudessem conduzir a uma regular intimidade de cama entre os dois. Constatou o fracasso de tal intenção quando William lhe pediu que com tato dispensasse Amélia de quaisquer serviços que a pudessem levar sequer às redondezas dos seus laboratórios. Porque era excelente pessoa, mas calamitosamente desajeitada quando se tratava de lidar com instrumentos e vidros de ensaios, desarrumava mais do que arrumava tanto era o seu baralhar de lugar com coisas em que a desordem era catastrófica, e para cúmulo nada fazia em normal silêncio e com comedido afã, até palrando com as plantas e com os animaizitos, do que se ufanava muito cheia de filantropia. Uma ocasião disse: — Falo sempre com as plantas... elas não me entendem é claro, mas eu gosto de conversar com elas. William contrapôs, com pura distracção e para abreviar a maçada de ter de lhe responder qualquer coisa mais pensada: — Será que não entendem? E de novo não prestou mais atenção ao que ela terá respondido. Mas, para ele foi como se tivesse aberto um livro do género “Saiba Tudo sobre as Coisas Vivas”, de tal modo ficara com o espírito perdido em divagações, durante o resto do dia e, como consequência, tendo desperdiçado uma série de laboriosas preparações químicas.

Louise teria assim de se apressar na procura de outra solução. Os ardores de William eram factor humano que ela não deveria nunca menosprezar, se o queria manter em forma pujante. Aliás, agradava-lhe ter de tratar pessoalmente desse assunto... escolher uma mulher apropriada para aquele homem era tarefa que não prescindia de bom gosto e pedia altruísmo, dotes que ela possuía.

 

 
(continua)

Escrito de acordo com a Antiga Ortografia

 

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Viernes, Mayo 17, 2013 - 15:28

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Nuno Lago

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