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Invasores sombrios

Sérgio não era um homem grande, tampouco forte, contudo, era temido e admirado por ser dono de uma coragem prepotente. Ninguém se atrevia a enfrentá-lo, pois, como ele mesmo dizia: ninguém pode fazer medo naquele que não teme a morte e, sendo ele mesmo um homem que não temia morrer, não tinha nada a perder, portanto, quem se metesse com ele, estaria em maus lençóis.

Naquele novembro coisas muito estranhas estavam acontecendo na pequena Cerqueira — cidadezinha Mineira com pouco mais de oito mil habitantes. O primeiro a perceber fora o pequeno Guilherme, que havia visto, debaixo do único viaduto da cidade, uma estranha figura, a qual ele não conseguiu identificar bem, pois saiu correndo berrando antes mesmo de poder verificar do que se tratava. Após o acontecido com o menino, diversos cidadãos tiveram inusitados encontros noturnos com absurdas figuras nas ruas de Cerqueira; por causa desses encontros indesejados, todos os cerqueirenses resolveram por si mesmos decretarem um toque de recolher: após às dez horas da noite, ninguém mais saia à rua, exceto para resolver situações inegavelmente urgentes.

Sérgio, por ser um homem de coragem, havia optado por trabalhar como vendedor de seguros de vida, função que exigia muita paciência, habilidade e coragem. Como ele mesmo sempre costumava dizer aos amigos com os quais bebia nos fins de semana:
- Vocês não sabem como é difícil convencer alguém de que todo mundo precisa pagar pra uma seguradora uma quantia que só será devolvida se uma pessoa morrer. Para fazer o que eu faço é preciso ter muita coragem mesmo... — antes de completar sempre tomava um grande gole de cerveja — e ter lábia também, é claro.

Naquela segunda-feira as coisas corriam como planejado. Sérgio havia saído de Belo Horizonte pontualmente às nove da manhã. Quatro horas de viagem, e lá estava a bela e pequena Cerqueira; tinha certeza de que faria bons negócios na pequena cidade. O que o diferenciava dos outros vendedores de seguros é que sempre visitava os lugares mais isolados: ia a fazendas, povoados, pequenas cidades, lugarejos que nem constavam dos mapas rodoviários. Com seu jeito simples e cativante convencia fazendeiros, donos de botecos e quase todos aqueles que possuíssem condições de arcar com as vultosas despesas cobradas pela seguradora.

Ao entrar em Cerqueira Sérgio percebeu algo diferente no ar, ou melhor, algo diferente nas pessoas daquele lugar. A principio, não conseguiu identificar o que realmente estava diferente, porém, logo percebeu: havia medo no rosto de cada um deles, muito medo. Pensou que certamente estava percebendo coisas demais, não havia razão para aquele pacato povo ter medo de assaltos e assassinatos, como era costume das pessoas dos grandes centros urbanos. Resolveu esquecer aquilo, pelos menos enquanto não tivesse provas mais substancias que confirmassem suas infundadas suspeitas.
Era a segunda vez que visitava a cidadela e, como da primeira vez, dirigiu-se a um belo hotel instalado num grande prédio ao estilo fim do século XVIII. Como da primeira vez, foi recebido pelo proprietário, um senhor de aproximadamente sessenta e oito anos de nome Antônio Trigueiro. Foi acomodado num dos melhores quartos do hotel, após uma soneca de meia hora dirigiu-se a um restaurante simples que ficava do outro lado da rua. Após um suculento almoço regado a cerveja, voltou ao hotel e começou a preparar seus apetrechos para iniciar o trabalho no dia seguinte; bem cedinho. Sérgio naquele momento não sabia, mas à noite aconteceria algo que mudaria sua vida para sempre.

O entardecer em Cerqueira era particularmente bonito e, Sérgio, como da primeira vez que visitara a cidade, resolveu assisti-lo da janela de seu quarto. Por volta das dezessete e trinta horas ele percebeu que o comércio já estava quase todo fechado, somente algumas portas estavam abertas, mas, rapidamente, estavam sendo todas fechadas também. Mesmo para uma cidade pequena como aquela, fechar o comércio tão cedo não era coisa, na opinião do nosso amigo, normal. Resolveu então perguntar ao proprietário do hotel a razão de tal fenômeno.

Sérgio desceu até a recepção do hotel, o Sr. Antônio Trigueiro já havia fechado a porta de seu estabelecimento e estava deitado relaxadamente num descorado sofá assistindo televisão.
— Sr. Antônio — chamou Sérgio ao pisar no hall. O outro tomou um susto.
— Pois não Sr. Sérgio — disse endireitando-se — Precisa de alguma coisa?
— Só uma resposta.
— Claro! É só perguntar que eu respondo... se eu souber a resposta.
— Acho que saberá sim... Por que o comércio está fechando tão cedo hoje? Tem alguma festa, ou evento importante?
O homem ficou pálido.
— Bem... bem, é que ultimamente estão acontecendo algumas coisas estranhas, sabe? Aí todo mundo achou melhor fechar mais cedo, voltar pra casa mais cedo. É o melhor a fazer hoje...
— Mas o que exatamente está acontecendo? — insistiu Sérgio.
— Não é fácil de explicar, até porque... nem nós sabemos direito o que está acontecendo, por isso achamos melhor fechar mais cedo e ficar todo mundo bem quietinho dentro de casa até o dia amanhecer — parou um instante, logo recomeçou — Á única coisa realmente que o senhor precisa saber é que não deve de forma alguma sair do hotel à noite... só amanhã depois das seis da manhã.
— Que brincadeira é essa?! Não posso sair do hotel?! Não estou entendendo esse negócio!
— Então vou explicar melhor a situação para o senhor, e não pense que estou ficando louco... quase todo mundo na cidade já viu e, quem não viu, já ouviu ou tem parentes que já viram e, inclusive, alguns já foram até atacados.
— Atacados? Do que realmente o senhor está falando? Tem algum bicho solto por aí? É só chamar o IBAMA, sei lá o...
— Acalme-se, a coisa é um pouco mais complicada — atalhou.
— Sou todo ouvidos então — disse Sérgio pacientemente, apesar da curiosidade absurda que estava tomando conta de seu espírito sagaz.

O Sr. Antônio contou sobre as estranhas criaturas que estavam aparecendo na cidade todas as noites daquele novembro, contou como o Betinho da farmácia havia quebrado a perna enquanto corria de uma estranha criatura verde que tentava dar-lhe um pegajoso e malcheiroso abraço. Contou também sobre os gemidos, os uivos, guinchos e outros hediondos barulhos inexplicáveis que todas as noites amedrontavam todos os cidadãos de Cerqueira.

Sérgio ouviu tudo com uma atenção digna de nota. O Sr. Antônio, enquanto narrava os fatos ao seu hospede, sentia-se mole, com os pêlos todos arrepiados. Ao terminar a narração, olhou para Sérgio com um olhar de cansaço e preocupação.
— Então senhor Sérgio, pelo amor de Deus... não saia pra rua, por favor, nem pense em abrir essa porta, o senhor não viu o que eu vi... eu não quero que uma daquelas coisas entre aqui no meu hotel. Compreende?
Sérgio, com um olhar maroto, olhou bem no fundo dos olhos do velho e disse:
— Compreendo sim senhor... mas, não se preocupe, eu só vou sair se vir alguma coisa esquisita.
— Mas o senhor não ouviu o que eu disse? Pelo amor de Deus homem! Você não sabe com o que está mexendo... ninguém sabe!
— Mas não se preocupe Sr. Antônio — disse eloqüentemente — Eu vou ficar quietinho no meu quarto, caso eu ouça alguma coisa estranha, desço, passo por essa porta aí e o senhor fecha ela atrás de mim. Pronto, simples.
— O senhor vai ver só uma coisa, não sabe o que essas coisas podem fazer, ontem eu vi o que fizeram com o pobre Malhado, o cachorro do Zé do açougue, ele só teve tempo de soltar um ganido e acabou! Morreu, nem sobrou um osso!
— Mataram o bicho?! Essa não! Agora é que quero ver esse trem mesmo! Não tem jeito, ninguém me segura não seu Antônio, eu não sou de ficar com medo de qualquer merda não... vamos ver a hora que aparecer algum troço desses.
— O senhor é quem sabe, mas tô avisando. Ah, e não esquece de fechar as janelas e as cortinas também, eles costumam ficar chamando a gente; eles têm uns olhos esquisitos... se brincar, convencem a gente a abrir tudo e deixá-los entrar e aí... só Deus sabe o que acontece.

A noite caiu sobre Cerqueira. Um vento frio varria as folhas das calçadas, a placa da farmácia Avenida rangia acompanhando a direção do vento; agora, bastante forte. Ninguém nas ruas, algumas luzes piscavam aqui e ali, ao longe um cachorro ganiu e, já mais perto, um estranho som preencheu o vazio das ruas da cidadezinha.

De seu quarto, Sérgio ouviu aquilo. Começou rapidamente a se preparar para sair à rua.

Sérgio desceu correndo as escadas. Quando chegou ao saguão foi interceptado pelo proprietário do hotel.
— Desculpe-me senhor Sérgio, mas não posso deixá-lo sair à rua. Não ouviu agora a pouco o barulho?
— Ô se ouvi! Por que pensa que estou saindo? Quero ver isso bem de perto.
— Pelo amor de Deus! — gritou Antônio Trigueiro, agora, exasperado.
— Acalme-se senhor Antônio — disse Sérgio em tom apaziguador — Como eu disse antes, quando eu sair, o senhor pode trancar a porta, não precisa se preocupar comigo.
— Mas o senhor não entende, não sabe o que essas coisas querem!
— É o que quero descobrir. Ah, quero descobrir também se existem de fato.
— O senhor mesmo não ouviu o som? O que no mundo pode fazer um barulho tão medonho?
— Sei lá! — exclamou — Eu quero descobrir, e já estou saindo — Sérgio se encaminhou rapidamente para a porta principal do hotel. Antônio Trigueiro bem que tentou interceptá-lo, contudo, não conseguiu. Além de determinado, o outro era bem mais jovem e ágil.
Sérgio saiu para a noite.

Antônio Trigueiro trancou rapidamente a porta, estava apavorado, tremia dos pés à cabeça. Apesar do medo estava também furioso com aquele homem metido que acabara de sair, não compreendia como alguém conseguia ser tão irritante e estúpido.
— Que façam bom proveito — disse para o saguão vazio — Ele quer assim, que assim seja — Fez o sinal da cruz três vezes e resolveu ir para seu quarto, lá, sentia-se mais seguro.

Parado em frente ao hotel Sérgio contemplou a noite. Estava muito escuro, e quase todas as luzes dos postes piscavam no mesmo ritmo. Estava frio também, e havia um cheiro nauseabundo, parecido com peixe estragado, ou repolho podre; era difícil de identificar.
Começou a caminhar vagarosamente pela rua, sempre atento aos cantos escuros que existiam aqui e ali. Não percebeu nada se mexendo, nenhuma ameaça. Começou a cantarolar baixinho uma canção de Raul Seixas, seguiu caminhando em direção à igreja matriz da cidade: mãos enfiadas nos bolsos, sorriso prepotente nos lábios, e uma cara de total despreocupação. Em sua mente a idéia de que todos os moradores de Cerqueira eram uns malditos covardes quase o fazia gargalhar, entretanto, segurou a gargalhada e seguiu somente com o cínico sorriso estampado na cara.
Chegou à pracinha da igreja matriz, até o momento, nenhum monstro ou fantasma de qualquer espécie havia lhe mostrado as fuças. Já estava bolando uma piada sobre todos os maricas da pequenina cidade chamada Cerqueira; uma boa piada para contar aos companheiros de bar nos fins de semana. Deu mais alguns passos até alcançar um dos bancos da charmosa pracinha, sentou-se, apanhou um cigarro, acendeu e começou a fumar tranquilamente enquanto observava a rua deserta. A única coisa que lhe estava deixando intrigado era o ritmado espetáculo pisca-pisca proporcionado pela iluminação pública de Cerqueira; mas ele tinha algumas hipóteses: certamente existia um problema com as ligações ou, então, era somente insuficiência de energia. Também havia o cheiro, mas já havia visitado muitas cidades malcheirosas, e isso não tinha nada de sobrenatural.
Durante dez minutos nada aconteceu, chateado, levantou-se e resolveu voltar ao hotel, afinal, precisaria dormir bem, o dia seguinte seria de muito trabalho. Parado na calçada espreguiçou-se, mas antes de se ajeitar novamente sentiu um terrível cheiro de ovo podre, não era mais o cheiro de antes, era um cheiro muito denso: pesado e asfixiante. No mesmo instante uma onda de vento levantou uma nuvem de folhas que começaram a rodopiar bem no meio da rua, em seguida, o espetáculo pisca-pisca terminou: todas as luzes se apagaram. A escuridão então ficou total, não se via nem mesmo as próprias mãos estando elas a quatro centímetros dos olhos. Sérgio soltou um palavrão e procurou o isqueiro no bolso traseiro do jeans. Encontrou o pequeno aparelho e ativou a pequenina chama. Começou a caminhar cautelosamente pela calçada, tentando não enfiar os pés em algum buraco do cimento. O cheiro estava terrível, e o vento estava aumentando. Subitamente, muito próximo, um terrível guincho varou a noite... Sérgio chocou-se contra algo mole, molhado e horripilantemente malcheiroso. Não resistiu, soltou um grito.
Continua...

Sérgio levantou a mão tentando iluminar, com a débil luz produzida pelo pequeno isqueiro, o obstáculo que se interpusera no seu caminho. Estava com as pernas bambas, e tremia todo, mas, felizmente, nada havia ali. Sentiu-se aliviado, mas, ao mesmo tempo, intrigado, pois havia se chocado contra algo sim, aquilo não poderia ser somente sua imaginação lhe pregando peças sem graça.
Parou um instante para se recompor, afinal, havia tomado um susto dos diabos, e não estava acostumado com esse tipo de coisa. Sempre fora um homem de coragem, e não era de ficar com medo de qualquer coisa, mas, agora, sentia que existia realmente algo muito estranho naquela cidadezinha; não era somente conversa de velhos covardes. Mas agora não tinha mais jeito, tinha julgado mal a situação e, tudo tem um preço, ele sempre soubera disso. Precisava voltar rapidamente para o hotel. Começou a caminhar novamente: mão estendida à frente do corpo, tentando iluminar o caminho com a débil chama do isqueiro, que, a cada passo, ficava mais fraca.
Enquanto caminhava percebeu um som estranho, parecia que algo estava caminhado às suas costas, ouvia um chapinhado, como o som de alguma coisa pisando sobre lama. Sérgio se virou e apontou a pequenina chama para frente, novamente, não viu nada. Receoso, voltou então a caminhar.
Não havia dado mais que quatro passos quando ouviu claramente alguém chamar seu nome.
— Quem está aí? Ei, quem está aí?
— Sérgio... — respondeu uma voz feminina num sussurro.
Sérgio estremeceu. Subitamente algo tocou sua nunca, ele deu um grito de pavor e se virou atrapalhadamente para o outro lado, perdendo o isqueiro.
— Não tenha medo Sérgio... sou eu, veja — todas as luzes da rua se acenderam, e Sérgio foi tomado de profundo pavor quando viu o que havia a poucos centímetros de seu rosto.
Parada na calçada estava uma mulher trajando um longo e esfarrapado vestido vermelho. Seu rosto era uma mascara medonha de sangue, grandes nacos de carne inchados e algo verde, semelhante a lodo. Os cabelos negros lhe caiam desarrumadamente sobre os ombros, e uma língua carcomida pendia exageradamente para fora de uma boca de lábios estraçalhados. As mãos caídas ao longo do corpo não passavam de ossos unidos por tendões apodrecidos; mas Sérgio ficou mais apavorado foi com os olhos daquela mulher sinistra. Eram dois enormes olhos verdes, porém, a parte que deveria ser branca estava repleta de veias vermelhas, e ele percebeu que uma larva estava passeando tranqüilamente pelo olho esquerdo daquela coisa. Tomado de profundo pavor Sérgio se virou e correu para longe, suas pernas não passavam de pedaços quase inúteis de uma borracha mole; quase líquida. Não queria olhar para trás, não queria ver aquilo novamente, mas, para seu terror, ouviu um ruflar de asas e uma gargalhada estridente. Percebeu imediatamente que ela estava vindo atrás dele, voando; voando como um maldito morcego do inferno.
Sérgio, mesmo sem querer, olhou para trás e viu a mulher voando em sua direção; mas agora não era mais uma mulher, era um enorme corvo de olhos vermelhos, e o maldito começou a grasnar de forma horripilante. Apavorado, ainda correndo doidamente, Sérgio voltou-se para frente e começou a procurar um lugar onde pudesse se esconder. Não havia lugar nenhum, tudo estava trancado. Endoidecido, virou-se para um lado, depois para outro, atravessou uma rua e dobrou uma esquina. Finalmente viu, a alguns metros de onde estava, uma construção. Em disparada foi direito para lá. Quando chegou mais perto percebeu que não estavam construindo algo, mas reformando o que parecia ser uma loja. Aproximou-se, tentou abrir a porta de vidro, mas ela estava trancada. Olhou para a rua, a coisa estava vindo com tudo, agora, não mais voando, mas andando de quatro. Inexplicavelmente havia assumido a forma de um enorme lagarto vermelho, e exibia uma língua grande e pegajosa, que se arrastava ao longo do corpo escamoso. A coisa soltou um silvo terrível, o vidro da porta se partiu em milhares de pedaços, atingindo o corpo de Sérgio que, no mesmo instante, sentiu o sangue quente jorrar de seu rosto ferido.
À beira da loucura, Sérgio, sem pensar, enfiou-se entre as grades da porta sem vidro, espremeu-se com pôde, ficou preso, mas não se importou, fez força, impeliu-se para frente com tudo. Mesmo sentindo os membros sendo deslocados, a pele sendo dilacerada pelos cacos de vidro, conseguiu passar para dentro do prédio em reformas. Do lado de dentro caiu esparramado sobre o chão empoeirado, sentia o sangue escorrendo de todas as partes de seu corpo, parecia que havia quebrado todos os ossos, pois estava sofrendo dores terríveis. Contudo, observou esperançoso a porta, não havia como aquele mostrengo passar por um buraco tão pequeno, ele havia conseguido, mas quase morrera, mas o bicho não passaria. A menos... E se ele assumir outra forma?! — Pensou assombrado. Essa idéia quase o fez desmaiar de pavor, entretanto, tentou se controlar, arrastou-se com dificuldade, sentou-se doloridamente num canto e ficou observando a porta.
O monstro estava se aproximando, era possível ouvir seu bufar feroz. Sérgio se encolheu todo, o coração estava batendo loucamente em seu peito; as têmporas acompanhavam o ritmo. Percebeu que estava tremendo tanto que daquele jeito jamais conseguiria ficar de pé. De repente um silvo terrificante cortou a noite, e o enorme lagarto vermelho enfiou a língua porta adentro, procurando pegajosamente o homem que estava escondido no interior daquele lugar escuro.

Quando Sérgio percebeu que iria ser apanhado por uma enorme e pegajosa língua, começou a rastejar em direção contrária à porta. Atrás de si foi deixando um rastro de sangue pelo chão, e a língua foi seguindo o rastro degustando alegremente a bebida ainda quente. Era inútil fugir, a língua parecia se esticar até o infinito. Quanto mais ele fugia, mais a maldita se esticava, e estava agora a poucos centímetros de seu pé direito. Sérgio, apoiado num canto, chutou aquele músculo pegajoso e frio, a língua se empertigou e deu um estalo, lançando um monte de saliva fedida em seu rosto. Uma tênue claridade invadia o interior da obra, o que permitia a Sérgio ter uma idéia da posição daquela coisa naquele espaço empoeirado. Não via perfeitamente a aberração, mas não precisava, o que conseguia ver já era o bastante para saber que era terrível demais.
Apoiado na parede Sérgio sentiu a língua se enroscando em sua perna direita. Chutou o mais forte que pôde, mas já havia sido irremediavelmente apanhado. Apesar do pavor que sentia, sua mente, para se preservar, distraiu-se com outros fatos; tempos idos — Lembrou-se do seu apartamento, de como havia deixado as coisas, de como era bom chegar de viagem e se esticar no velho sofá da sala; ver televisão e tomar uma deliciosa cerveja gelada. Lembrou-se dos avisos do senhor Antônio Trigueiro, lembrou-se de sua primeira bicicleta, da emoção que sentiu quando conseguira dar as primeiras pedaladas. Lembrou-se nitidamente de Sofia, sua primeira namorada, e de como se atrapalhara quando foi dar o primeiro beijo naqueles lábios que se revelaram tão doces e sinceros...
Eram lembranças simples, que iam e voltavam em flashes doloridos. Ele não entendia como, num momento crítico como aquele, conseguia se lembrar de coisas como aquelas. Foi invadido por um sentimento de vazio, nada mais importava, estava tudo irremediavelmente perdido. A língua deu um estirão, lançando-o contra o chão duro vários metros à frente. Estava sendo puxado com uma força incrível, e muito rápido. Sérgio viu, agora hirto de pavor, os olhos e a bocarra do monstro que estava lá fora. Era loucura, mas o enorme lagarto, apesar do esforço que estava fazendo para trazer novamente a língua para dentro da boca, estava sorrindo sarcasticamente para sua presa.

Antônio Trigueiro estava deitado em sua cama contemplando o teto. Estava ouvindo os terríveis sons produzidos pelas coisas estranhas que toda noite invadiam as ruas de Cerqueira. Apesar do medo que sentia daqueles monstros, outra coisa o estava atormentando: o acordo que havia feito com uma daquelas aberrações na noite em que quase morrera. Ele sabia que precisava ir lá fora, fazia parte do acordo, contudo, estava apavorado e sinceramente arrependido. Mas não havia como fugir, precisava mesmo ir lá fora. Um pensamento lhe ocorreu repentinamente; um pensamento com o qual ele mesmo tentava se livrar da culpa — Não havia mandado aquele hóspede para a morte, o próprio imbecil foi quem quis desafiar as criaturas. Era certo que havia um acordo que deveria ser cumprido, mas ele não era o responsável pelo sofrimento daquele homem; aliás, foi sorte ter encontrado um tolo que, por si mesmo, ofereceu-se, sem saber, às criaturas sombrias. Tremendo, sentou-se na cama e começou a se preparar para sair para o inevitável encontro com o terror.

Sérgio começou a gritar. Quando viu a bocarra escancarada do lagarto vermelho foi invadido de indizível pavor insano. Gritava e se debatia, tentando inutilmente se livrar daquela língua medonha. Subitamente foi espremido contra a porta sem vidro, sentiu que seu corpo iria se despedaçar, a pressão era insuportável, estava ficando sem ar, sentiu que iria morrer se a pressão aumentasse. Inacreditavelmente a pressão aumentou, ele ouviu então o som dos próprios ossos sendo quebrados como palitos de fósforo, a dor era cruciante. Sem saber como, foi arrancado de dentro da construção, caindo inerte sobre a calçada fria. Apesar da dor terrível, estava consciente, e viu que, agora, o lagarto gigante não estava mais sozinho. Havia pelo menos uma dúzia de seres estranhíssimos, cada um mais aterrorizante que o outro, e todos estavam olhando para seu corpo arrebentado com uns olhos que deixariam até o próprio demônio às portas da insanidade.
Sem forças para gritar e, tampouco para se mover, entregou-se por fim. Não fazia sentido lutar, não fazia sentido mais nada. Lembranças estranhas giravam em torvelinho em sua mente apavorada, nada mais tinha nexo, tudo era opaco e terrível. Subitamente viu algo que, no estado em que se encontrava, não fazia diferença se aquilo era real ou uma miragem de louco — De pé junto ao enorme lagarto estava o senhor Antônio Trigueiro, o homem estava chorando e tremia todo. Mas isso, para Sérgio, não importava, não tinha mais ânimo nem para imaginar a razão da presença do proprietário do aconchegante hotelzinho. A última coisa que viu foi a bocarra do lagarto bem junto de seus olhos.

Antônio Trigueiro contemplou o homem inerte sobre a calçada. Seu coração ardeu gravemente de tanta culpa. Desatou a chorar descontroladamente. Viu quando o enorme lagarto vermelho avançou e abocanhou com sua bocarra a cabeça de Sérgio — Houve um estalo terrível quando os ossos do crânio do homem estendido sobre o chão foram arrebentados pelos poderosos dentes da criatura.

Cumpriu-se o acordo.

Anderson Cristiano da Costa
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