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SOBREVIVENDO COM O CÂNCER - PARTE FINAL

CAPÍTULO 05

Em 13 de julho fui à Unicamp para a minha terceira consulta. A jovialidade da médica, o interesse explícito e o seu bom humor me encorajaram a fazer todas as perguntas que queria. Tirar as dúvidas que tinha.

- Qual a causa do “meu “ câncer, doutora ?
- Não há uma resposta precisa ainda, Sr. Fabio. Há uma corrente que acredita ser determinada por alguma infecção e outra vertente que advoga ser puramente neoplásica.
- Perguntam-me o número de meu câncer, doutora. Existe mesmo essa classificação? Qual é o “meu” numero?
-O seu estádio é 3A em uma escala de 1 a 4, Sr. Fabio.
- Tudo isso? Não está no começo? Complica o prognóstico?
-Não se preocupe, o estadiamento é referente ao subtipo histológico e por haver manifestação em dois lugares e não agrava o prognóstico.
-A doença é fatal?
-Sim.
-Como ocorre a morte?
- Principalmente pelo enfraquecimento geral do organismo. A caquexia. Ou, por complicações secundárias daí advindas.
-Corro riscos iminentes, doutora?
- Até por eventuais efeitos colaterais do tratamento, Sr. Fabio.
Porém, sem a medicação o óbito é certo.
-Quais serão os efeitos da Quimioterapia, doutora?
- Variam de pessoa a pessoa, mas considere e se prepare para ter todos. Náuseas, cefaléia, perda dos cabelos entre outros. Há casos até, de não haver qualquer tipo de reação. Ou de advirem sintomas tão suaves que passam despercebidos. Aliás, a sua quimioterapia será o protocolo MOPP - ABV.
- Hemangioma quer dizer câncer? Também o tenho no fígado?
- Pode ser que sim. Ou ser um tumor benigno.
-Quanto tempo terei de sobrevida, doutora?
- Sr. Fabio vai depender da resposta de seu organismo ao tratamento. Os recursos atuais favorecem a um bom prognóstico. O tratamento é chato, doloroso e longo, mas pode ser altamente eficaz.
-Existe cura?
-Em alguns casos, sim.
Na seqüência a conversa girou em torno do assédio que eu estava sofrendo por parte de quase todos para que experimentasse remédios milagrosos (babosa com uísque . . . Hum , talvez sem a babosa . . . ), orações diversas, católicas ou evangélicas, despachos etc. . E rimos com a história de seu pai que teve que caçar uma tartaruga para que ela, quando criança, tivesse um crescimento normal (aliás, o seu 1.50 m. provaram a ineficiência do tratamento) e terminamos a consulta nos desejando boa sorte. Ela, na carreira que estava iniciando. Eu, no tratamento.
Enquanto aguardava para ser medido e pesado, dados que orientam a prescrição da quimioterapia, tornei a vê-la em ação. No lado direito de onde estava sentado, um senhor sofreu uma parada cardíaca e veio a falecer. Ali, ao nosso lado. Tão logo o filho do mesmo pediu ajuda, ela literalmente pulou as cadeiras que estavam à sua frente para prestar o socorro, que infelizmente foi inútil. Foi a primeira morte que presenciei na Unicamp. Tão perto, tão visível.
Devidamente medido e pesado, segui para o ambulatório de Quimioterapia no segundo andar do mesmo prédio e entrei por uma porta lateral, tendo à direita o banco de sangue e à frente uma rampa suave. Ao contrário do térreo, com seu aspecto lúgubre, o ambiente era claro, com janelas imensas e cheirando a completa assepsia. Parecia coisa de americano. E, tal qual no andar térreo com funcionários corteses. Coisa de brasileiro. Posso dizer, um local muito confortável.
Oscilando entre o temor e a confiança de que suportaria a medicação, junto com o amigo Edison esperei por três longas horas. Também aguardando, mais uns três ou quatro pacientes e respectivos acompanhantes, com os quais entabulamos conversas breves e formais. Porém e não obstante essa brevidade, era comum e claro o desejo de falar. Relatar a doença. Aliás, a mesma vontade que eu sentia e tentava combater pois julgava o quanto seria enfadonho para o ouvinte. Ao cabo da espera fomos informados pelo farmacêutico -um oriental típico: cerimonioso, sorridente e gentil - que a medicação estava em falta e que o início seria postergado para a semana seguinte. A falta da medicação e o visível constrangimento do profissional corroboraram a imagem que eu passara a ter do Estado. Se falhar, o erro tornava-se desculpável pela excelência de seu pessoal. Voltei a procurar a minha anterior idolatria à iniciativa privada que falhara do seguro da instituição bancária ao convênio de saúde. Onde teria ido parar o meu antigo ideário, a glorificação do “Darwinismo social“, a apologia à pura competição e tantas outras bobagens ?
Passara a buscar o consolo de Deus e agora podia ver que a sua face é a da solidariedade. E tanta solidariedade eu estava recebendo que me sentia na obrigação de redistribuí-la. Pela primeira vez eu senti que sofrer de câncer tem, lá, as suas vantagens.
O adiamento da quimioterapia, num primeiro momento, trouxe-me um grande alívio. No segundo, alguma preocupação e certa culpa. Tanto a família quanto os amigos aguardavam o início do tratamento. Embora não falassem, era visível a ansiedade de todos. E, agora, eu me sentia culpado por frustrá-los. Quanto à preocupação foi motivada pelo temor de que faltas como aquela seriam corriqueiras , mas também pelo fato de que o tumor, no pescoço, começara a doer levemente (sentia como se fossem pequenas mordidas de dentro para fora) e eu temia que a dor se intensificasse ou que a demora agravasse a doença.
Por indicação de uma concunhada cheguei a ligar em outro serviço de oncologia, em Barretos, tentando uma segunda opção de tratamento. Foram muito receptivos, aliás, mas a distância me fez abandonar a idéia. Nesse ínterim, também procurei um oncologista em minha cidade e obtive algumas respostas vagas sobre o meu tratamento, seus efeitos colaterais e oferecimento de algum suporte, caso viesse a necessitar. Falou também de certo hematologista de Limeira que chefiava o Banco de Sangue do hospital local e que era especialista no assunto, a quem eu também poderia procurar em caso de necessidade.

Em 20 de julho, finalmente, tomei a primeira Quimioterapia. Ou melhor, iniciei o tratamento. Ao contrário do que imaginara, a terapêutica é dividida entre a medicação injetável, os comprimidos quimioterápicos e os remédios de suporte, ingeridos oralmente.

Esquema MOPP - ABV

Na primeira semana , injeta-se:

M - Mostarda Nitrogenada A - Adriamicina
O - Oncovin B - Bleomicina
P - Prednisona V - Vinblastina
P - Procarbazine

Na segunda semana , injeta-se:

-Dramin - Dramin
-VCR - Adriamicina
-CTX - Bleomicina
-VLB

A ingestão oral , fica repartida em :

Procarbazine 04 cápsulas por dia / 200 mg
Prednisona 04 cápsulas por dia / 80 mg
Ranitidina 02 cápsulas por dia / 300 mg
Ciprofloxacin 02 cápsulas por dia / 500 mg
Fluconazol 01 cápsula por dia / 200 mg
Alopurinol 01 cápsula por dia / 300 mg

A medicação injetada na veia (Sr. Fábio, começaremos pelas veias das mãos e se depois for necessário avançaremos para as dos braços) demorou aproximadamente uma hora para ser ministrada e durante esse tempo travei conhecimento com a garota que estava na poltrona ao lado e também recebendo a mesma medicação. Sofria do mesmo tipo de câncer que eu , mas foi a sua graça e experiência no tratamento que facilitaram o nosso contacto. Eu mal conseguia disfarçar o medo, embora tentasse .

Chamá-la-ei de Luciana. É uma garota risonha, falante e bonita. Perambulou pelos ambulatórios da vida por bastante tempo (e tome antiinflamatórios para a sua irritação na garganta) até ter o diagnóstico definitivo e, em conseqüência, o seu estado agravado sobremaneira. Nada , contudo , que pudesse apagar o seu sorriso. Nem mesmo as náuseas que sentia durante a injeção do remédio. Náuseas que, aliás, eu não tive e nem qualquer outro tipo de reação. Senti, ao contrário, apenas crescer a minha confiança
em relação à capacidade de superar a toxicidade do tratamento e simultaneamente a admiração pela competência e pelo bom humor das profissionais daquele departamento.
Todos nós portávamos doenças graves e éramos tratados de forma tão alegre, descontraída e cuidadosa que era, por vezes, difícil acreditar na gravidade de nossa situação. Tudo tão leve. Tão suave. Tão diferente do estereótipo que eu imaginava.
Na volta para casa apenas a ansiedade para chegar. No jantar, certo receio de sentir náuseas mas sem fundamento, pois tão tranqüila quanto a digestão foi o restante da noite. No dia seguinte fui comprar os remédios e mesmo em uma farmácia de manipulação o preço girava em torno de dois salários mínimos. Para mim já era um custo alto e pude imaginar a situação daqueles para quem o tratamento seria impossível. Tudo pronto, iniciei a quimioterapia oral e nos dias seguintes já sentia os seus efeitos. Primeiro os benéficos, principalmente no aumento de apetite e na redução do cansaço que sentia e que é um dos sintomas da doença. Em contrapartida, pequenas oscilações na pressão e o aumento de gases. Não eram, todavia, incomodativos e o bem estar que sentia era grande. Durante a semana esquematizei a ingestão dos comprimidos dividindo-os por horários. Passei a ter insônia completa e varar acordado as noites e madrugadas tornou-se uma rotina. Entretanto, não sentia cansaço ou irritação. Com o aumento do apetite tomei, por iniciativa própria, a decisão de fazer uma super alimentação, comendo várias vezes ao dia, com bastante verdura cozida e muitos líquidos. Tanto para evitar ressecamentos, quanto para conseguir excretar a maior quantidade de resíduos tóxicos.
Em 27 de julho voltei à Unicamp para tomar a segunda dose da quimioterapia injetável . A terrível, segundo os pacientes mais experientes, “Vermelha“. De fato, é vermelha, grande e assustadora . Novamente tive como companheira a Luciana e conversamos durante as quase cinco horas em que durou a sessão. Foi reconfortante vê-la preocupar-se com a velocidade com que o meu remédio estava sendo ministrado e a sua pressa em pedir à enfermeira a devida redução. Na sala dos acompanhantes, o amigo Edison enturmava-se com os outros e participava das discussões sobre os temas propostos por uma senhora que fazia um trabalho voluntário muito interessante.
Em relação aos doentes todos os cuidados eram tomados para evitar o tédio. Recebíamos constante atenção, revistas, TV, som ambiente, vídeo, sanduíches, refrigerantes. Toda uma rede era montada para suavizar a nossa estada. Mas em relação aos acompanhantes as opções restringiam-se a conversar entre si, fazer trabalhos manuais e freqüentemente preocupar-se com eventuais reações que pudessem estar ocorrendo conosco. Se para mim a demora já era um martírio posso avaliar o sofrimento do Edison. Aliás, o de todos os acompanhantes. O passatempo proposto por aquela senhora é digno de nota, tanto pela originalidade quanto pelo benefício que acarreta.
O retorno para minha cidade foi tranqüilo. A auto confiança em alta, pois se aquela era a medicação mais forte e eu não sentira qualquer desconforto, certamente sairia ileso do tratamento. Na noite seguinte fui a uma festa de aniversário de uma amiga muito querida. Ao contrário do que sempre ocorrera , dispensei o uísque mas em contrapartida saboreei, entre os comprimidos, novamente o gosto de ser o centro das atenções. O carinho dos amigos. Sentia a pena que lhes causava e assumia uma atitude de despreocupação com a moléstia. Eu queria ser o exemplo da coragem. E, de fato, sentia-me muito bem e confiante que superaria os efeitos colaterais e a própria doença. Julgava, na minha ignorância, que os porres que havia tomado anteriormente tinham “treinado“ o meu fígado para aquelas agressões. Até hoje não sei se é verdade. É aquela história do Imperador que tomava pequenas e diárias porções de veneno para não ser envenenado . . .
Entretanto, os efeitos da quimioterapia começaram a se fazer notar com mais vigor, alguns dias depois. A ingestão dos comprimidos aumentou na mesma proporção o apetite, os gases e os incômodos daí decorrentes. Passei a sentir câimbras violentas que chegavam a torcer os pés de forma impressionante. Junto, vieram as fortes dores musculares e a perda de sensibilidade nas mãos. Oscilações na pressão tornaram-se mais freqüentes e me faziam tremer, sentir frio ou calor. Também passei a sentir muito amargor na boca. E, na vida.
Mas, o efeito mais incômodo e o mais presente era a insônia. Dormia levemente de duas a três horas e as noites ficavam povoadas do medo de demorar a morrer, de ser doloroso, das deformidades, de incomodar cada vez mais a família e até do medo de sarar. Com mais de 40 anos e sendo, na melhor das hipóteses, um ex-canceroso como conseguir um emprego ? Já fui diretor de recursos humanos, estive do outro lado da mesa e sabia como as coisas se dariam. Do que eu sobreviveria ? Como poderia sustentar a família ? Porém, o maior pavor era ver que o futuro estava ficando cada vez mais parecido com o meu passado.
Devia ter oito ou nove anos e ainda me lembro da cena com exatidão: minha mãe segurando um neto recém nascido e ostentando uma hérnia imensa no abdômen. Também ostentava a sua face predileta: a eterna vítima. Eu não queria a sua morte. A hérnia era o perigo. Tinha medo de ser criado por minha irmã ou por minha cunhada. Queria ter uma mãe que não fosse avó. Que fosse só minha. Que não insistisse em nos maltratar com o seu gosto pelo sofrimento. Tanta miséria. Tantas divisões do que não havia; e agora, o círculo estava se completando. O futuro repetiria o passado mas o sabor da síndrome de vítima agora era meu. Oh, pobre canceroso! Coitado! . . . Quanto ao meu filho, ora, o meu sofrer seria uma parte valiosa de sua educação. Seria ? Meu Deus, que bobagem! Trinta e tantos anos não apagaram o terror que eu senti naquela ocasião. O menino, agora com onze anos também estaria sentindo? Embora não aparentasse e talvez estivesse até contente por eu não trabalhar mais e com isso dedicar-lhe mais tempo, demonstrava através de comentários esparsos e maior proximidade comigo a sua crescente preocupação.
Desde o diagnóstico usei a palavra câncer com alguma insistência. Queria desmistificá-la para ele. Procurei lhe dar a sua exata medida (sim, é uma doença grave, mas tratável). Contudo, não mensurei o impacto que lhe causaria. Até que, em certo dia,
vi o erro que cometera e quando meu cabelo começou a cair já tinha claro o que deveria fazer. Ao invés de compartilhar a doença o convocaria para o processo de cura. Também eu exorcizaria o fantasma da auto-piedade que me rondava cada vez mais. Adotaria, com ênfase, o meu outro lado preferido: o melodramático heróico.

CAPÍTULO 06

Na manhã de 08 de agosto fui alertado por minha mulher de que o meu travesseiro estava recoberto de cabelos. Já tinha notado, há alguns dias, que estavam opacos, mortos. Sabia que estavam para cair, no entanto, naquele dia iríamos almoçar na casa de um amigo e não seria apropriado chegar à festa completamente careca. Assim, ao lavá-los, o fiz com bastante cuidado. Temia que caíssem justamente naquele dia. Mas só temia para aquele dia.
Na verdade, eu até ansiava pela calvície, pois ela me identificaria como doente e quando voltasse à Unicamp não me sentiria diferente dos outros. Afinal, se tive que abandonar o grupo dos sadios, queria entrar no de doentes. Somos animais sociais, sem dúvidas.
No dia seguinte, a alopecia (ok, alopecia = careca) acentuou-se a tal ponto que o vento, quando ia para a loja, formava em torno de minha cabeça uma espécie de auréola. Certamente que não era a morte. Eu não passaria à condição de anjo, por motivos óbvios. Recordei o orgulho da Luciana ao me contar como raspara o cabelo quando começou a cair (Não caíram, Fabio, eu os raspei). Imaginou, na sua ingenuidade, que ainda comandava as ações.
Também imaginei e fui ao barbeiro para raspá-los. Relutava em ceder o comando do meu corpo ao câncer. A decisão de mudar a minha aparência teria que ser minha e não do vírus. Afinal ele era o hóspede e eu o hospedeiro. Orgulhoso de ainda poder decidir quando mudaria o meu visual usei o fato para engajar o meu filho no tratamento. Simulei estar envergonhado de ficar calvo, de ficar ridículo. Hoje eu sei que fiz o certo, pois a partir de então o bom humor em relação à doença tornou-se constante.
Mas o barbeiro, digamos, fez um mau serviço e ao olhar no espelho me vi como um fugitivo da Febem (ok, com muito mais idade). Não era eu! A lembrança de Cecília Meireles foi inevitável (Em que espelho eu deixei a minha face?). Em casa, com o barbeador, completei o trabalho.
Hoje, também posso ver que mais que simples vaidade o fato de buscar aquela simetria sinalizava que meu estado emocional ainda oscilava entre o normal e o anormal. Novamente em cena, o chato perfeccionista.
Fazer os outros se acostumarem à minha nova aparência foi mais difícil que imaginei. Minha funcionária, na loja, mal conseguiu disfarçar o espanto. Para compensar e tentando ser gentil disse que eu tinha ficado muito parecido com um cantor de pagode, de quem era fã. Os clientes supunham que a loja estava sob nova direção e os amigos tentavam esconder o susto. . . .

- Você raspou o cabelo? (responder que não, que continuavam como antes, seria uma indelicadeza)
-Caíram.
- Por quê ?
-Efeito dos remédios
-Ah, não acredito
-É . . . então . . . (por favor, acredite e não pergunte mais).

Quanto a mim, insistia em me pentear a cada manhã. Tentava me habituar aos bonés e ao calor que produzem ou então verificar que o vento frio dói. Em contrapartida, gozava a despreocupação de poder deitar sem ter necessidade de ajeitá-los, de lavar a cabeça sem a necessidade de secá-los e o conforto de estar igual, ao acordar e ao deitar. Tinha que haver algum consolo.
Concomitantemente, minha pele apresentava forte descamação e os corticóides produziam inchaços e o apetite maior gerou 10 kg a mais de gordura (tentei até acreditar que o efeito estufa tinha, por algum motivo, aumentado a força de gravidade da terra). O fato, no entanto, é que a minha nova imagem estava formatada. De acordo com o protótipo e a forma que se espera de alguém com câncer.
Em 18 de agosto voltei à Unicamp para a minha terceira quimioterapia. Reencontrei a Luciana e a sua risada fácil ante a minha calvície mostrou a sobrevivência de sua doce infantilidade perante a nossa doença. O seu abraço, tão espontâneo quanto o riso, indicou a minha adesão ao grupo, do qual, aliás, também fazia parte um jovem de 20 e poucos anos que mora em uma cidade vizinha a minha.
Dar-lhe-ei o nome de Rodrigo. Já o tinha visto e ouvira, indiretamente, a sua mãe contar a outra o seu sofrimento. De como havia sofrido quando a alopecia havia se instalado no filho, do horror que sentiu quando a crueza do médico previu para o filho uma morte rápida e mais , muito mais . . . Sua figura pobre, mal vestida, mal cuidada, sofrida, realçavam a sua dor e o seu desespero. Era triste ouvir. Não podia imaginar, entretanto, que em breve iria, também, senti-los. Na companhia do Rodrigo, pois o estado da Luciana tinha se agravado e então passaria a fazer um outro tipo de tratamento, subi ao segundo andar para tomar a medicação. A enfermeira, em um mau dia, tentou em vão punçar as veias do Rodrigo por três vezes. As minhas, por duas. Por fim, a chefe acertou.
Na verdade, era o início da debilidade de nossas veias que já exigia uma hierarquia superior. Se a juventude do Rodrigo impediu que lhe ocorressem efeitos colaterais, a minha maturidade, provavelmente, os provocou e assim, no dia seguinte ao me levantar senti que meu braço estava inchado e dolorido. Imaginei que algum inseto havia me picado, hipótese que tive que descartar nos dias seguintes com a constância do edema. Todavia, era apenas mais uma ferida de guerra que eu poderia ostentar e à rotina dos comprimidos acrescentei a de colocar chá de camomila, gelado, nas mãos.
Na manhã do dia 20 de agosto, antes de ir para a escola, meu filho nos mostrou que também em seu pescoço havia gânglios. Falou com alegria e orgulhoso de ser igual ao pai. De fato, eram gânglios visíveis. Terrivelmente visíveis. Medonhamente iguais aos meus. As dores que sentira antes podiam ver naquele momento, não eram as dores do câncer. Essa, sim!

A dor do câncer é terrível, imensa. Principalmente quando ele está instalado em seu filho.

Até então eu tinha conseguido manter algum equilíbrio e até mesmo alguma dose de humor para as situações que estava vivendo. Os anos de miséria na infância e de árduas dificuldades na vida toda haviam me dado resistência para que eu espantasse o desespero que pudesse ter me atingido em função da falência, divórcio e doença. Mas para essa dor eu não tinha resistência. Com a pressa da aflição e do desespero , levei-o ao pediatra.

- Não se preocupe Sr. Fabio, são gânglios normais para a idade.

- É que sofro de Hodgkin, doutor.
-Bem, nesse caso pode ser que haja alguma complicação.
Normalmente, todas as crianças tem esses ingurgitamentos que são absolutamente normais. Porém (maldito porém), como há o histórico familiar . . . (eu me tornara o histórico, o vetor. O culpado!) faremos um Rx, o hemograma e então e estadiamento. Como. . . ?
. . . Estadiamento. . . ?
Mas esse era um termo utilizado para pacientes de câncer e não deveria ser empregado para o meu filho. Meu Deus!

Os resultados do hemograma e do Rx foram retirados bem antes do tempo estipulado pelo laboratório (como resistir ao desespero?) e foram negativos. Alívio parcial.

- Eu lhe disse Sr. Fábio, é uma ocorrência normal. Porém (Ah, não!) devemos aguardar mais 15 dias para uma nova avaliação.

Essa quinzena ficou, então, dividida entre a esperança e o medo de olhar para o seu pescoço e ver que os gânglios tinham aumentado. Foi a quinzena de tentar lhe preparar para as agruras do tratamento. De lhe esconder as minhas dores físicas, os inchaços e as aflições. Por fim, a sensação de ter o alívio completo com a extinção dos nodos e o afastamento completo da hipótese neoplásica.

Tire essa idéia da cabeça, Sr. Fabio . . .

Na saída do consultório do pediatra, fomos até a biblioteca municipal que fica em frente. Eu precisava conhecer melhor Mr. Hodgkin. Mas embora tentasse, naquele momento, não consegui ler. Martelava em minha cabeça a idéia de que tal qual os líquidos, as emoções tomam o formato do recipiente. Sejam eles de tempo ou de espaço. O desespero absoluto, a impotência ante o inimigo, a revolta, o medo, a esperança e a completa felicidade couberam em 15 dias.

Talvez, por isso que a lágrima seja líquida . . .

Afastada por completo a ameaça sobre o meu filho, restava apenas a minha doença. Mas essa eu poderia vencer. O tumor no pescoço já não existia mais e eu como o “Super Homem“ de Nietzsche esmagaria o restante. No entanto o que antes era pura prepotência de minha parte, de frívola jactância, agora tinha outra substância. Nietzsche novamente seria trocado por Deus. Ou melhor, por Jesus.
A sua imagem espancando os vendilhões no templo me aparecia como a luta que eu deveria travar. Era mister que eu também expulsasse o invasor de uma das casas do Senhor. E eu, expulsando-o de mim, poderia ajudar a expulsar todos os outros. Eu tinha condições para isso e o que eu pudesse fazer seria na tentativa de minorar o sofrimento daqueles que sofrem, direta ou indiretamente, da patologia. Quando ouvi a mãe do Rodrigo relatando todo o seu drama pude avaliar a sua dor. Ao experimentar essa mesma dor pude compreender e sentir a sua extensão. E é para a senhora, mãe do Rodrigo . . . do João . . .da Mônica . . que essas páginas são dedicadas.

Em 25 de agosto tomei a quarta quimioterapia. Novamente, sem qualquer reação ou outros incômodos, além daqueles já relatados. Cinco dias após notei o aparecimento de um novo nódulo, desta vez na virilha. O inchaço e a dor no braço agravaram-se e comecei a sentir uma forte dor sob a costela direita, na região do fígado. Seria o hemangioma?
Também nesses dias iniciei a pesquisa sobre a doença. Se eu estava trancado em uma sala e na companhia de uma serpente venenosa, era melhor que acendesse a luz. A primeira publicação que consegui, dias antes, datava de 1.949. Depois, vieram outras e pude fazer o seguinte resumo:

Tratado de Medicina -Russel L.L.Cecil - Ed. 1.949

. . . Inexorável e fatal. Remissões temporárias. Sem tratamento, a sobrevida pode chegar a 03 anos. Há progresso lento e inexorável. Ainda que o volume dos gânglios possa ser controlado, via Radioterapia. Emagrecimento, caquexia, anemia, mesmo em pacientes tratados agravam-se continuamente e a febre se torna mais constante. Óbitos até com gânglios pouco ingurgitados. Pior prognóstico para pacientes com comprometimento de gânglios no mediastino e abdominais. . .

Tratado de Medicina - Cecil Logb - Ed. 1.973

. . . Sem tratamento a sobrevida pode chegar a dois anos. Com as terapias atuais, especialmente Radioterapia, o prognóstico se relaciona com a fase em que se iniciou o tratamento e com o tipo histológico:

Estágios 1 e 2:

70 a 90% dos pacientes com Sobrevida maior que 5 anos
50 a 60% dos pacientes com Sobrevida maior que 10 anos
40% dos pacientes com Sobrevida maior que 20 anos
Estágio 03:

20 a 40% dos pacientes com Sobrevida maior que 5 anos

Estágio 04:

10 a 20% dos pacientes com Sobrevida maior que 5 anos

Terapêutica de Conn - Ed. 1.987/1.988 - Robert E. Rakel M.D.

. . . Neoplasia curável, principalmente nos estágios 1 e 2. Nos últimos 30 anos houve uma melhora significativa nos índices de sobrevida. Estadiamento adequado é igual a maior chance de cura. É importante a sub-tipagem histológica, pois proporciona dados quanto aos aspectos clínicos e para o prognóstico. . .

Diagnóstico e Tratamento - Ed. 1.990 - Steven A. Schroeder

. . . Curso inexorável e fatal. Resultados mais pobres para idosos; pacientes com doença volumosa; com depleção linfocitária ou Celularidade Mista. . .

Linfoma Maligno - D.K. Hossfeld

. . . Linfomas são doenças malignas, originárias de uma proliferação descontrolada de células linfáticas. Devido a presença de tecido linfático em todo o corpo, os Linfomas podem aparecer em tecidos extra nodais e extra linfáticos como: o cérebro, pulmões,estômago, testículos e ossos. O subgrupo Celularidade Mista (CM) é a variedade mais prototípica de Linfomas de Hodgkin. O tratamento e prognóstico de pacientes com LH são determinados principalmente pelo estadiamento da doença. O estadiamento é a determinação da extensão da doença.

Grupo de baixo risco - Pacientes com estádio 1a e 2a

Grupo de médio risco - Pacientes com estádio 1 e 2 com fatores de risco adicionais e pacientes em Estádio 3a

Grupo de alto risco - Pacientes com estádio 3b e 4

Pacientes que recidivam após a quimioterapia têm uma boa chance de responder ao esquema quimioterápico que já foi usado, se a recidiva ocorrer mais de 12 meses após o seu término. Em menor tempo uma quimioterapia de alta dose, seguida de reinfusão de medula óssea autóloga deve ser tentada embora os resultados para essa abordagem seja ruim. Para que esse método, potencialmente letal, seja efetivo, é necessário que a doença seja sensível à quimioterapia convencional. Característica intrínseca do LH e persistente após o sucesso terapêutico, a baixa imunidade celular T predispõe os pacientes com LH a infecções principalmente por bactérias encapsuladas e por vírus herpes zóster. . .

. . . Porém, a complicação mais grave relacionada ao tratamento de LH é o desenvolvimento de uma malignidade secundária. A leucemia mielóide aguda - LMA -secundária está claramente relacionada ao esquema MOPP. . .

Manual Prático de Condutas em Oncologia Clínica - Doença de Hodgkin - Olavo Feher

. . . A incidência anual de LH é de 2 a 4 casos por 100.000 pessoas, sendo que as taxas de incidência são maiores no sexo masculino.

. . . Estádios 2b, 3a, 3b, 4a, 4b serão acompanhados nos períodos de remissão da seguinte forma:

A cada 03 meses no primeiro ano:

• Consulta clínica e exame físico
• R x de tórax (PA e perfil)
• Exame de imagem da área primariamente afetada, p. ex.
• Ultra - Som cervical
• Hemograma
• Bioquímico (provas de função hepática e renal)

Semestral, nos primeiros 02 anos e anual até o quinto:

• Tomografia de abdome e pelve
• Captação de corpo inteiro com citrato de Gálio

Anualmente:

• Provas de função pulmonar
• Avaliação cardiológica

Em cada uma dessas publicações podia reconhecer os sintomas que sentia e as reações que me afligiam. Já podia vislumbrar o que poderia me acontecer. Como se daria a Morte. Que não deveria me iludir com os períodos de remissão. Que o tratamento que estava recebendo era o mais atual que existia em todo mundo.
O conhecimento me trouxe um conforto muito grande. Tudo o que sentia e que talvez viesse a sentir já fora estudado, era conhecido e igual para todos. A avidez com que estudei o assunto poderia, a princípio, parecer mórbida, e, no entanto, era apenas uma estratégia de combate. Tinha que conhecer o inimigo se quisesse derrotá-lo. Ou, pelo menos, oferecer um combate mais longo e assim, fazendo uma média dos prognósticos cheguei ao seguinte denominador: teria aproximadamente mais 5 anos de sobrevida. Para quem imaginava muito menos, era, com efeito, um tempo razoável pois eu poderia ver meu filho quase adulto, teria tempo para pagar as dívidas, acertar os negócios e ficar torcendo pela descoberta de um novo medicamento.

Estava situado. Sitiado, talvez. Mas embora contido pelas circunstâncias, tinha conseguido mensurar o monstro. Touché! En guarde!

CAPÍTULO 07

Setembro começou com visitas. Recebemos uma concunhada e um amigo, ambos da cidade de minha mulher. Vieram trazer o convite de casamento do filho da primeira. Dias depois, esse convite iria me fazer enfrentar uma prova difícil e, simultaneamente, reafirmar a grandeza da solidariedade humana. No primeiro domingo do mês recebemos a visita de minha mãe, meu irmão, meu sobrinho e respectivas famílias. Apresentei-lhes, então, a minha calvície, meus inchaços e as oscilações de pressão que me faziam tremer, ter frio, calor ou vertigens. Foi a primeira vez que me viam “doente”. Imagino que não deve ter sido agradável, pois a alegria que nos era habitual, e que ainda foi ensaiada, não vingou por muito tempo. Foi uma visita tensa e quando acabou senti vergonha e pesar por lhes ter causado o constrangimento.
A minha figura, então, já causava desconforto nas outras pessoas. Pude sentir esse fato, quando, no começo do mês, fui ao banco receber o pecúlio da seguradora e a minha careca, os inchaços e a dificuldade para caminhar fizeram a garota da recepção ir rapidamente ao meu encontro, levar-me até uma mesa, em separado, e fazer o atendimento com uma rapidez inédita. Era visível que tinha urgência para que eu fosse embora, talvez para livrar-se de um eventual mal estar que eu viesse a sentir ou então, por um dever de solidariedade. Nunca pude fazer essa distinção mas o fato é que eu incomodava.
Em 13 de setembro tomei a quinta quimioterapia e dessa vez, para completar a igualdade com os outros pacientes, tive náuseas e vômitos violentos durante toda a noite e madrugada. No dia seguinte, a perda de sensibilidade nas mãos, que já sentia, acentuou-se, passei a ter tremores com mais constância e maior intensidade (era difícil, por exemplo, levar o garfo à boca), e perdi a força e o movimento de pinça do polegar com o indicador. Essa incapacitação aumentou minha angústia de modo exponencial. Foi um tempo de permanecer longas horas fixando coisa alguma, de não querer ir mais para a loja e, em alguns dias, me recusar até mesmo a sair da cama.
Em 20 de setembro tomei a sexta dose injetável. Sem reações. Embora de aspecto mais ameaçador e de aplicação mais lenta, eu tolerava melhor essa segunda dose de cada ciclo. A pedido da médica e para efeito de re-estadiamento, fiz no dia seguinte, em minha cidade, Rx do tórax, do abdômen e tomografia abdominal. Para fazer esses exames usei o convênio médico e novamente a minha má figura fez com que uma das atendentes quebrasse as regras burocráticas. O Rx do abdômen, aliás, foi fruto de um mal entendido do médico, que o confundiu com a Tomografia. E, acabou sendo muito importante. Na tomografia nada foi constatado, porém no Rx do tórax apareceu um estreitamento do mediastino e no abdominal uma ilha óssea na cabeça femoral e escoliose. Foi o fim da minha expectativa de que as quimioterapias pudessem ser interrompidas. A severidade dos efeitos colaterais já não permitiam que os encarasse como se fossem gloriosas feridas de guerra. Eu não queria mais brincar de fazer quimioterapia.
Entre esses efeitos o pior eram as dores e a fraqueza que sentia nas pernas. Levantar e caminhar já eram funções que o travamento me dificultava fazer. O uso da bengala já havia sido indicado há algum tempo e eu cheguei a ir a uma loja de produtos ortopédicos para comprá-la. Porém, tive vergonha e desisti. Agora, posso relembrar com bom humor a argumentação do vendedor:
-Leve, firme e elegante. Combina com o senhor. Elegante ? Mais coerente se também a tivesse adjetivado de dura. Combinaria mais com a minha situação financeira. Mas era preciso usar e pedi a minha mulher que a comprasse. Junto, veio a “explicação“ de que o laço de barbante, no cabo, deveria ser colocado no punho para evitar que a bengala caísse quando eu tivesse que abrir uma porta, uma gaveta . . . Era o que me faltava! De bengala e burro!
Entretanto, ao contrário do que supunha, o uso da mesma abria portas, gavetas e corações. Preferência nas filas, ao atravessar as ruas etc. É verdade que eram facilidades que me constrangiam, embora as utilize até hoje.
No dia 24 minha mulher e meu filho viajaram para assistir ao casamento do sobrinho dela. Seria a primeira vez que ficaria sozinho após ter tomado a quimioterapia. Fiquei receoso, porém evitei atrapalhar o passeio de ambos. Era importante que saíssem por alguns dias do ambiente anormal em que nossa casa tinha se transformado. Nos dias seguintes trabalhei o dia todo na loja, até por medida de precaução. Temia ficar só e caso acontecesse algum problema estar isolado da ajuda necessária. Comprei uma boa quantidade de brinquedos prevendo (ou torcendo?) uma venda melhor no Dia das Crianças que se avizinhava, ajudei a montar as prateleiras e recebi a visita de fornecedores. As noites foram tranqüilas e o cansaço físico facilitou um sono de melhor qualidade. Pelo menos até o domingo.
Ao acordar senti um formigamento permanente em todo corpo, câimbras muito fortes e uma enorme indisposição física. Pensei que era o efeito do esforço que havia feito nos dias anteriores. Fiquei acamado até por volta das 11h quando recebi o primeiro convite para o almoço, que recusei alegando um convite anterior. Foram mais três convites e as recusas eram sempre as mesmas . . . Alegava que estava compromissado com aquele que tinha feito o telefonema antes. Até hoje tenho vergonha dessa mentira, porém o mal estar que estava sentindo não me permitiria ir à casa de qualquer pessoa ou a um restaurante. Tentei cozinhar um talharim com alcaparras (aliás, uma receita que criei no período de inatividade) e ao tirar a panela do fogo não pude sustentar o peso espalhando macarrão, água e o que me sobrava de dignidade, pelo chão. Voltei para a cama, de onde só levantei no fim da tarde para atender ao telefonema de uma tia, que era mãe do primo que morreu de câncer . Triste coincidência. Mas, apesar dos pesares, venci o desafio de ficar sozinho.
Na segunda feira seguinte, o mal estar foi menor e mesmo assim permaneci acamado. A noite, no jornal da TV, ouvi uma noticia alvissareira: cientistas americanos tinham feito testes positivos, com proteína de ratos, para o desenvolvimento de um novo remédio para o câncer linfático. Segundo a locutora, uma doença fatal, chamada Hodgkin. Prazo para início de uso humano: nove anos.
No último dia de setembro estive na Caixa Econômica Federal e a minha careca conseguiu abrir as portas mais cedo. Uma moça, que chamarei de Mariângela, funcionária da Instituição, sorriu e me convidou a entrar quando lhe disse que tinha um problema de saúde. O seu pai tinha o mesmo problema. A nossa interação foi imediata e a sua gentileza foi igual a do Gerente que me atendeu.

. . .Sim senhor, Sr. Fabio, o senhor pode retirar os saldos remanescentes de suas antigas contas de FGTS. A legislação prevê essas liberações para os casos de doença que são irreversíveis (sic)…

O dinheiro extra me permitiu comprar novos óculos e tive o consolo de me achar parecido com Ghandi.

CAPÍTULO 08

Em 04 de outubro acompanhei meu filho a uma “maratona“ de desenhos que reúne os alunos de todas as escolas da cidade. No ano anterior ele foi o vice campeão de sua categoria e, mais que no ano anterior, torci para que o feito se repetisse, pois há muito tempo não tínhamos vitória nenhuma. Inconscientemente já estava lhe transmitindo responsabilidades e provavelmente razões para preocupar-se. Tantas, talvez, que o seu desempenho não repetiu o do ano anterior. Ao fazer o seu desenho já demonstrara uma má vontade que lhe era inabitual. Parecia triste, desmotivado, absorto.
Embora tentássemos manter o bom humor, era evidente que o meu estado de saúde alterava a rotina. O frio, extemporâneo, foi um complicador a mais e aquela manhã me deixou como seqüela uma cefaléia forte e uma sensação muito ruim.
No dia seguinte, ao caminhar para a loja, senti um forte tremor em todo o corpo o que me obrigou a ficar sentado em uma praça por longo período. Driblando a tontura e esse mal estar e caminhando bem devagar consegui chegar. Como de hábito, as vendas do final de semana foram decepcionantes. Idem ao resultado do balancete do mês anterior, que terminei naquela manhã.
Refletindo o País, a cidade vivia uma recessão que os meus seis anos de permanência ainda não tinham visto. Monoculturista e dependendo majoritariamente de uma usina de açúcar e álcool, em situação difícil, a economia local vivia uma estagnação sem precedentes e que, obviamente, atingia a sua camada mais pobre, ou seja, os meus clientes. Ao optar pelo comércio popular duas razões foram preponderantes: não tinha capital para me dedicar a um tipo de comércio mais sofisticado e achava que a camada menos favorecida era a que mais compraria. Minha experiência anterior era a base dessa suposição. São pessoas que estão sempre com algum tipo de demanda reprimida , sem acesso a qualquer tipo de investimentos e, portanto, ao terem algum dinheiro o repassam ao comércio. Foi uma tese que vingou enquanto havia algum dinheiro. Mas agora, a automatização das lavouras e a recessão tinham extinguido o pouco do que ainda restava.
Porém, o Dia das Crianças, tentei acreditar, reverteria a situação e seria um indicador seguro para o próximo Natal. De fato, as vendas do fim de ano foram tão ruins quanto as daquela data. O banco, contudo, precisaria ser pago. E tome, novos financiamentos, rolagens de dívidas, de prazos, de esperanças. De angústias.
Em 14 de outubro tomei a sétima quimioterapia. Antes, enquanto aguardava a consulta (particularmente demorada naquele dia em função de uma greve nos hospitais da região e conseqüente aumento de casos na Unicamp) ouvi no novo sistema de som ambiente (gostou do nosso novo som, Sr. Fabio? ) a música “Tatuagem“ de Chico Buarque. Ainda sentia prazer na vida. Os prazeres da vida.
Há tempos tinha pensado que se morre por camadas. Vamos perdendo-as ao longo da vida. Primeiro as nossas fantasias, sonhos e ideais. Depois, os formalismos, os pudores e as vaidades. No fim, os interesses. Até certo ponto construímos um arcabouço de firmes convicções, verdades inabaláveis, sonhos concretos, ilusões secretas e realizações (reais ou imaginárias). No cume do processo, vamos aliviando a carga e sem perceber tornamos a descida muito mais rápida.
Ao meu lado uma moça que acompanha um paciente, na maca e inerte, chora disfarçadamente. Quem será? O que será do paciente? À frente uma menina se contorce de dor e grita pedindo morfina, ou que a deixem morrer. Além dos interesses, também tinha perdido a esperança… Como todas aquelas outras fisionomias estáticas, pálidas, verdes. Os pregadores religiosos, de plantão, não podiam vencer. Era o fim das descidas…
Quando fali financeiramente perdi a camada chamada de “bom marido” e “pai provedor”. Quando levei minha mãe embora e não pude lhe dar um novo teto perdi a de “filho”. Minha figura, dores e complicações levaram a camada de “boa companhia”. E em cada uma dessas fases a respeitabilidade. O orgulho, a dignidade…
No entanto, ao ouvir a música e sentir prazer, após muito tempo, podia ver que era possível que novas camadas aflorassem. Diferentes, todavia. Heráclito tinha razão quando disse “Nenhum Homem consegue atravessar o mesmo rio por duas vezes; na
segunda , ambos estarão modificados“.
A punção na veia novamente exigiu a intervenção do escalão superior da enfermagem. O trombosamento em meus braços já atingia proporções muito sérias. O companheiro ao lado, mineiro como eu, porém mais amedrontado, insistia comigo para saber quando tempo ainda nos restaria.

- Talvez dois anos,
-Só isso ?,
-Bom , há casos que podem chegar a três,
-Ah , que bom !, ? ? ? ? ? ?
Até hoje tenho curiosidade em saber o que faria com aquele ano excedente.

Medicação pingando e a náusea se instalando. Estava sendo injetada na veia. Na volta para casa não consegui tomar nem o tradicional cafezinho no posto habitual. Durante a noite e madrugada os vômitos foram intensos. Meu corpo, de fato, já não suportava mais aquelas ressacas de porres inexistentes. Mais algum dia e outros efeitos se manifestaram com intensidade: os braços trombosados agora doíam com intensidade e apresentavam uma cor roxa que me assustou e também fortes dores sob a costela direita e inchaço ostensivo do abdômen. Foi difícil me habituar a deitar apenas do lado esquerdo e equilibrar as calças que eu não podia fechar.
Seria o fígado que estava inchando? O hemangioma se espalhando? Mas, na última consulta a Dr.a. me disse que o tumor hepático - está quietinho, Sr. Fabio, não vamos acordá-lo e quanto aos nódulos que existiam no pulmão estão sob controle. Eu podia sentir as dores, mas sem me preocupar com a sua origem. Não era prudente pensar.
No dia 21 voltei para tomar a oitava quimioterapia. Cinco horas de medicação pingando. Uma ampulheta que merecia atenção. Segundo por segundo, desânimo e desconforto. Meu Deus, valeria a pena aquele sacrifício? Se eu abandonasse o tratamento será que eu não conseguiria morrer mais rápido?
Ontem, ao consultar um ortopedista em minha cidade para tentar me livrar das dores nas pernas e ver do que consiste uma protuberância no joelho esquerdo tinha ouvido … a “sua“ doença pode ter trazido esse complicador a mais. É preciso ter paciência … O escambau ! A doença não é “minha“. Eu não a comprei, não a procurei. Quero devolvê-la! Eu preciso ter paciência, sim ! Mas, me ensina como ! Devia lhe ter dito… Devia dizer para todos… Devia chorar… Gritar… Mas você não pode, José ! você é duro, José !… E agora, José ?
Dois dias depois, na loja , fiz um novo expositor para as flores que eu pretendia vender no dia de Finados. Ou melhor, tentei… (Pai, não ficou no “padrão Fabio de excelência“). Realmente, não podia segurar o serrote, martelo, pregos, furadeira e nem a frustração. No almoço, que também tentei fazer, o excesso de sal levou a minha mulher e o filho a tomarem água em profusão. Há alguns dias vinha sentido alterações no paladar e dessa vez reparti o problema. No jantar, preferiram apenas os alimentos doces.
Por mais que relutasse eu tinha que reconhecer que não estava muito bem de saúde…

CAPÍTULO 09

Em 1° de novembro liguei para a Unicamp em busca de uma orientação sobre o problema dos trombosamentos nos braços e atender ao pedido para que eu fosse até lá, no momento me era inviável, pois eu queria preparar as flores que venderia no dia seguinte, compartilhando a barraca de um florista amigo, na porta do cemitério. A opção foi procurar o Pronto Socorro do hospital local onde precisei aguardar o médico terminar de ler a sua revista (comigo ali, sentado à sua frente), lhe explicar que Hodgkin é câncer linfático e sugerir o tratamento que ele deveria me receitar. Estava usando bolsas de água quente e cobertores. . . Muito bem, pode continuar. . . Verdade que ele teve o trabalho (sic) de escrever de próprio punho essa prescrição e me encaminhar para a sala de engessamento.
No dia seguinte, Finados e o primeiro aniversário da morte de minha irmã, pedi ao amigo Edison que me levasse ao cemitério para acompanhar os funcionários e as vendas. A intenção era permanecer por algumas horas, ajudar no que fosse possível. Porém, o braço imobilizado e a dor nas pernas me impediram. Eu bem que tentei . . . Deus é testemunha do quanto tentei . . . Mentira, as dores estavam suportáveis e o enfaixamento do braço não era impeditivo - afinal, eu só contaria dinheiro. Na verdade e como diria Simone Beauvoir “a cerimônia do adeus nos choca mais que o próprio“. A proximidade das outras mortes me fez pensar na minha. Todas aquelas flores, as velas . . Não fiquei mais que dez minutos.
Em casa recebemos a visita de minhas sobrinhas de Campinas e novamente o cerco da família afastou o fantasma. Dois dias depois estive na Unicamp, sem qualquer agendamento, e para minha surpresa fiz novamente o Hemograma e fui consultado no geral e não apenas pelos trombosamentos. O estado dos braços era, com efeito, preocupante e a residente chamou sua supervisora. Mais antibióticos e um aviso: aquelas tromboses demorariam muito para serem curadas. Posteriormente viria a saber que são irreversíveis.
No dia 11 voltei para tomar a décima quimioterapia. Fui antes atendido pela mesma residente. Devo ter-lhe impressionado na semana anterior pois ao me ver e antes mesmo de nos cumprimentarmos, perguntou sobre os braços. Estavam melhores , o antibiótico produziu um bom resultado. Essa moça , aliás, me fez relembrar um fato que tinha ocorrido comigo no inicio de carreira. Ao fazer o exame clínico constatou uma massa no abdômen, o aumento no gânglio inguinal e certo alargamento no mediastino. Foi categoricamente contestada por sua supervisora, a quem chamara. Pediu-me, então, que na semana seguinte tornasse a levar o Rx. de tórax e abdômen que havia feito recentemente. Assim fiz e os resultados comprovaram as suas observações. Mostrou-os para a supervisora, na minha frente. Participei do seu sorriso e sua satisfação. Comigo, foram os números de uma projeção que se confirmaram, logo no início da carreira.
As tromboses tinham cedido e as aftas e as dores de dente, causadas por comidas ou bebidas geladas, não incomodavam tanto. Porém, as náuseas começaram tão logo começou a medicação. Eu não queria mais senti-las. Por que passar por aquilo se o mediastino tinha alargado, o nódulo inguinal crescido e sei lá mais o quê? Eu queria sarar. Livrar-me daquilo. Eu queria a minha vida de volta! Eu sempre gostei da noite, dos bares e boates. Do uísque no fim do dia. Da piscina com o meu filho. Das viagens. Do encontro com os amigos, dos livros, do cinema, do teatro. E até (hum . . .) do trabalho. Eu queria as minhas coisas !

No dia 15 a dor no abdômen ficou violenta e as tromboses recrudesceram mas, mesmo assim, atendemos ao convite de um casal amigo para jantarmos e conhecer a sua nova residência. Regressar ao seu convívio foi ótimo, mas diferente. Eu lhes causava preocupação (Você pode descer a escada , Fabio ? Pode comer carne?) e me sentia constrangido . Heráclito e o seu rio . . .
Quatro dias depois fiz nova tomografia e não pude deixar de pensar que já tinha recebido tanta radiação que em breve poderia iluminar a casa. No dia seguinte, fui a um médico local e passei a tomar mais antibióticos para as tromboses. Só não voltei para reclamar da ineficiência dos mesmos, por serem amostras grátis que o médico havia conseguido.

CAPÍTULO 10

Nos últimos dias de novembro peguei um dinheiro emprestado com minha mulher para fechar as contas do mês. Contava pagar-lhe com o bônus de Natal, que imaginei, a seguradora me pagaria. Não sei de onde tirei essa idéia, aliás. Quero crer que as rezas, dessa vez, foram tão fortes, quanto eficientes. O certo é que no dia primeiro de dezembro, me assustei por ter o dobro, disponível, nos créditos da seguradora. Com as finanças mais aliviadas, segui para a loja onde me encontrei com o proprietário do prédio e lhe comuniquei que encerraria as atividades no dia 24, véspera de Natal. A sua nobreza não ficou restrita apenas em me liberar de eventuais multas contratuais ou dar um desconto no valor a lhe pagar. Veria adiante toda a grandeza de seu caráter.
O processo de encerramento da loja já estava decidido há algum tempo e deixei de fazer qualquer compra desde então. Obviamente a redução do estoque foi inevitável o que me obrigou a criar divisórias para, encurtando o espaço de vendas, esconder as faltas de mercadorias. As péssimas vendas, no entanto, não me obrigavam a mexer com freqüência nesse espaço, uma vez que o estoque permanecia quase que imutável. O que crescia era a minha vontade de que chegasse logo o encerramento e eu pudesse me afastar de vez das preocupações com aquele “elefante branco”.
No dia 09 de dezembro fui tomar a décima primeira quimioterapia. Enquanto esperávamos senti o Edison tenso e temi que fosse cometer alguma indelicadeza com o pessoal da Unicamp. O trombosamento dos braços causou preocupação na enfermagem e a punção da veia exigiu um esquadrinhamento minucioso. Quatro horas de medicação e náuseas durante o procedimento. Na volta, conversando com o Edison sobre a sua irritação soube que era uma tentativa de que o meu atendimento fosse agilizado pois estava preocupado com a minha prostração. A sua preocupação comigo foi direta e como tantas outras, eu podia sentir mas não tinha consciência de um fato: pela primeira vez em minha vida eu estava recebendo tantas coisas sem oferecer nada em troca. Isso me comoveu .
No dia 12, completei 43 anos e para comemorar tive um dia cheio. Cedo fui ao Clube onde meu filho, Thyago, recebeu a promoção no judô. Para o almoço recebemos as sobrinhas de Campinas e a visita, super bem humorada e divertida foi intercalada com telefonemas de primas e tias de minha cidade. À noite fui assistir ao concerto de piano que encerrou o ano de estudos de teclado do garoto. O orgulho de ver como já tocava bem, por ter sido promovido no judô, não pôde ser convertido em aplausos, em virtude das minhas mãos estarem completamente inchadas e doloridas. Não sei se ele pôde sentir o beijo que lhe enviei, da platéia.
No dia seguinte voltei à seguradora para nova perícia médica e renovação do meu seguro. O médico foi otimista quanto à sobrevida que eu poderia ter. Pude ver sinceridade nos seus argumentos e fiquei animado com a perspectiva. Cedeu também alguns artigos sobre a doença para completar os estudos que já havia feito. Era quase Natal, havia tido um feliz (literalmente) aniversário, recebido a visita de primas e tia e existiam chances de uma longa sobrevida e alguma folga nas finanças. Um clima de estar quase vencendo o pior.
No dia 16 fui tomar a décima segunda quimioterapia e como, novamente, as tromboses estavam severas a supervisora foi chamada. Constatou o problema e me disse, não sei se para me animar, que aquela seria a última dose injetável. Ante a minha
indagação se aquilo era a cura, foi reticente. Pediu-me novos exames - Cintilografia, Tomografias de Tórax e Abdômen total e Ultra-som abdominal - e só então poderia me dar uma resposta definitiva. Antes de subir para o segundo andar fui até o Hospital agendá-los. A Cintilografia e o ultra-som ficaram marcados para o dia 27 e 29 e as Tomografias só poderiam ser feitas em março do próximo ano. Precisaria novamente recorrer ao convênio médico.
Fui então tomar a minha última dose. Mesmo ali, o clima de Natal já imperava com a distribuição de presentes, votos de sucesso e até certa alegria. Há anos lera um livro “Poeira das Estrelas, se não me falha a memória“ em que o autor observa que durante o Nazismo e todas as suas implicações, os pastores continuam a levar as suas ovelhas para as planícies. É real, pude comprovar. Mesmo em fases tenebrosas, ainda conservamos o que nos resta de rotina e teimamos em ser felizes.
Na minha esquerda, sentou-se uma jovem que eu já vira anteriormente. Era difícil não notá-la, pois estava sempre chorando. Vou chamá-la de Mônica. Tinha 23 anos, um filho de seis e um Linfoma Não Hodgkin. Trazia consigo um desespero tão grande que em todas as vezes que a vi e nas poucas em que conversamos sempre imaginei que seria a última. Dessa vez o seu desespero não era menor. Ao sentar-se ao meu lado tremia tanto que a enfermeira não conseguia punçar a sua veia. Foi preciso que a segurassem. Tentei lhe apertar a mão para transmitir alguma confiança e não pude. Meus dedos não dobravam por conta dos inchaços. Soube, então, que a minha capacidade física de ajudar quem quer que fosse já era muito limitada. Mas eu podia falar e o fiz com tamanha convicção sobre as nossas curas que aos poucos consegui acalmá-la. Terminei a minha medicação antes que ela e ao nos despedirmos combinamos que voltaríamos a nos comunicar. Não deu tempo, no entanto, pois ela faleceu naquela noite. Que fique com Deus. Um beijo.
Não podia mais oferecer ajuda física é certo, mas era preciso que eu ajudasse os pacientes de câncer . E, dentre todos, principalmente a mim. Ao pensar em fundar a ONG (Organização Não Governamental) nenhum altruísmo ou sentimento nobre norteou a minha intenção. Ao contrário, o que eu queria era preencher o meu tempo que ficaria completamente vago após o Natal. Queria a todo custo evitar que a obsolescência me levasse ao desespero da Mônica ou que outras Monicas sentissem esse desespero. Era preciso, pois, um espaço para poder conversar com outros portadores da patologia. Poder compartilhar experiências, dores, desconfortos e, quem sabe, esperanças. Como explicar para as pessoas sadias a angústia, o medo, a
solidão ? Ver-se desobrigado, pelo menos ali, de ouvir frases do tipo
. . . “não pense na doença“ (como não pensar ! ? ) ou então “você precisa de ajuda profissional “ (não, eu não preciso de psicólogos; o que eu preciso é do colo de alguém que me diga que tudo não passou de um pesadelo, como acontecia quando eu era menino e os terrores da idade me assolavam e então ouvia de seu colo a minha mãe dizer que era para fechar os olhos que eu veria o meu anjo da guarda afastar o mal . . . e eu não consigo mais ver esse anjo). Também, e, ainda que apenas por momentos, não ter que fingir interesse pelos problemas cotidianos, sonhos comuns e rotinas dos não doentes. O que, talvez, seja o fator que mais nos afasta, mais nos isola. Como discutir a marca de determinado carro, se a ansiedade é pela morfina que suaviza a sua dor ? Como se compadecer pela cefaléia, gripe ou resfriado de alguém ? Como entender a depressão (que , aliás , no meu tempo se chamava tristeza ) dos “mauricinhos“, “patricinhas “ e “peruas“ da vida ?

Não há como! A doença e o tratamento são tão superlativos que tudo o mais diminui. É preciso beirar a Morte para entender a extensão da Vida!

Por outro lado, quem gostaria de ouvir o que sinto, o que sentimos ? O que penso, o que pensamos ? O pudor de ficar expondo as faces da doença inibe a tentação de falar. Fundando a ONG talvez eu pudesse me iludir com o sonho de que a vida teria voltado ao normal.
Em 22 de dezembro tomei o último comprimido quimioterápico. A medicação de suporte continuaria até o mês seguinte. Dois dias depois, véspera de Natal, trabalhei na loja até as 16h e fechei as portas em definitivo. Depois de 33 anos de trabalho estava à toa.
Comecei a trabalhar aos dez anos de idade, na terrinha natal. Filho caçula de uma família pobre e convivendo com mais dois irmãos e quatro sobrinhos vivíamos uma situação curiosa onde a realidade era de penúria mas o modo e o estilo de pensar sugeriam que fôssemos abastados. Falávamos da pobreza como se a ela não pertencêssemos . Vício que, aliás, não perdemos . O que também , talvez , explique o fato de não termos prosperado financeiramente. Éramos e somos incapazes da disciplina que acumula riquezas e reduz o sentido das coisas. O sentido da vida . Impensável contentar-se com um “terreninho“, “uma casinha “, “um carrinho“, etc. Nascemos e vivemos a primeira infância em Poços de Caldas, sul de Minas Gerais. Cidade que ficou famosa por seus cassinos, nos anos dourados, pelo glamour de seus Hotéis e pela efervescência de sua vida noturna. O cosmopolitismo das cidades turísticas que gera, como nos gerou, os híbridos que somos. Sempre vivemos como se a fortuna fosse chegar a qualquer hora e era preciso estar preparado. Pensar grande. Como rico. Entre os complexos , optamos e vivenciamos o de superioridade. Pena que os estômagos não concordem com isso e, portanto . . .
Meu primeiro trabalho foi lavando os banheiros da Estação Rodoviária local. A idéia foi de minha irmã e o sistema consistia em mantermos a higiene e cobrarmos uma taxa dos usuários. Na época, foi uma inovação e os resultados foram compensadores. No masculino ficava eu e no feminino a minha sobrinha, dois anos mais nova. No Natal daquele ano chegamos até a ganhar presentes e então tivemos as nossas primeiras bicicletas (verdade, que depois tiveram que ser devolvidas por falta de pagamento das prestações). De ruim só a gozação dos colegas na escola, a dureza do trabalho estafante, a má educação de alguns “fregueses“ e a água gelada nas madrugadas de zero grau, que são comuns na serra.
Mas, embora promissor, o nosso, digamos, empreendimento, só durou perto de um ano. Fugindo de credores e de relacionamentos amorosos inadequados nos mudamos para Goiás. Ali trabalhei em uma embaladora de pimenta do reino por alguns meses. Mais precisamente até a pele do meu lábio superior teimar em se desprender pelo contacto com a pimenta (Por ironia, no início foi a pimenta e no fim a mostarda. Nitrogenada, off course. É provável que eu tenha alguma incompatibilidade com temperos . . . ). De Goiás nos mudamos para o Triângulo Mineiro e em Uberlândia trabalhei em uma pequena loja e numa rede de farmácias. Em 1.974 mudamos novamente. Dessa vez para Campinas no interior de São Paulo (os amigos campineiros certamente me odiarão pelo “interior“). De imediato consegui emprego em uma importante rede de supermercados. Entre essa loja inicial, os escritórios em São Paulo e a nova loja em Campinas fiquei até 1.991. Também fiz estágio de mais um ano em outra rede de Hipermercados e fui conselheiro em Associações Comerciais e membro delegado de Partidos Políticos. De 1.991 a 1.997 trabalhei em outra rede de lojas e shopping. Fiz uma boa carreira. De contínuo a diretor, passando pelas chefias, supervisões e gerências que compõem a praxe dessas organizações.

Em 1.997 abri o meu próprio negócio que durou até 24 de dezembro de 1.999 e a decisão de encerrar as atividades foi uma óbvia constatação da minha incapacidade de trabalhar. Porém, a consciência da invalidez é mais agressiva que zagueiro argentino e assim, ao fechar a loja, fingi que estaria entrando em férias depois de tanto tempo. Doía menos.
Arrefecendo um pouco o impacto do fim da loja, recebemos a visita de meu irmão, sua família e minha mãe para o Natal. Não sei se pela doença ou por um certo desafogo nas finanças, o clima da festa transcorreu em uma serenidade inusitada. Afeto puro, troca de presentes, ceia deliciosa e muita alegria. E, de minha parte, abstemia total. Inédita em aproximadamente 34 anos.
O fim da loja, de suas obrigações e frustrações me deu a 81 esperança de solucionar as dívidas enquanto me afastaria das preocupações. Assim, o desmanche físico da empresa não foi doloroso, ao contrário do que temia. Os móveis e instalações
consegui vender com a ajuda do amigo Edison e o restante do estoque repassei para uma outra lojista muito amiga. A empresa tinha sido uma aventura que não deixaria saudades, mas foi também um aprendizado importante. Toda a experiência que eu julgava ter foi insuficiente para contornar as crises. Agora, no entanto, se eu tivesse uma nova chance . . .
Os dias seguintes, com os nossos hóspedes, continuaram muito agradáveis e mesmo com o fim da visita, mas com minha mulher e filho em férias o sentido da inutilidade ainda não era concreto. Também me iludia que estava em férias. Sentia os efeitos da recém finda quimioterapia no fígado, no estômago e nos braços, severamente trombosados e na madrugada do dia 26 chegou a dor. Por volta da uma hora acordei sentindo uma dor tão intensa, no lado direito das costas, que me impedia de respirar. Julguei a princípio que seria de origem muscular e tomei analgésicos. Na manhã seguinte o inchaço do abdômen era tão proeminente que mesmo sob a camisa era claramente visível. Durante o dia consegui manter a dor sob controle me auto-medicando com todos os analgésicos que pude conseguir. À noite , novamente, se tornou tão intensa que precisei ir ao Pronto Socorro do Hospital local por duas vezes com intervalo de aproximadamente quatro horas. Em ambas, fui medicado como se estivesse com cólica renal (achar uma veia para aplicar a injeção foi um trabalho difícil e demorado) e também cheguei a pensar nessa hipótese.
No dia 27 fui levado pelo amigo Edison à Unicamp para tomar a injeção de Gálio 67 preparatória do exame de Cintilografia. Antes estive no ambulatório de quimioterapia em busca de uma solução para as dores no abdômen e costas e para
o problema do trombosamento. Fiquei emocionado com o carinho das enfermeiras, sua preocupação com os meus braços (pareciam sentir-se culpadas) e tive que rir do bom humor do médico.

-. . . Como se não bastasse o câncer , o senhor ainda foi arrumar cálculos renais e tromboses, Sr. Fabio . . .

Como eu escrevi páginas atrás, a doença e o tratamento são superlativos. Para as tromboses, mais antibióticos e quanto à cólica renal eu deveria continuar com o tratamento que já estava fazendo na minha cidade. O problema seria tomar a injeção de Gálio pois os meus braços estavam, literalmente, impedidos. Desci para o Hospital de Clínicas , segui a faixa rosa e fui até o Departamento de Medicina Nuclear. A habilidade da enfermeira, ante o impedimento de punçar os braços, fez com que ela pudesse fazer a aplicação em meu pé direito sem que eu tivesse sentido sequer o toque da agulha. Para não dizer que não estava encerrando o ano com o pé direito . . .
Até o dia 29 a rotina se manteve entre dor, dificuldade para respirar e idas regulares ao Pronto Socorro. No dia 29 voltei à Unicamp para fazer as imagens da Cintilografia, mas, antes, tomei uma superdose de analgésicos pois se o exame que tinha feito anteriormente já fora penoso (várias horas imóvel e com os braços acima da cabeça) eu temia não suportar esse de agora , em função das dores e da dispnéia. Todavia, consegui fazê-lo embora as imagens não tenham ficado boas, o que demandou marcar uma nova data para nova sessão. Mas essa nova sessão só ocorreria no novo ano e até lá eu ficaria apenas com a rotina iniciada no dia vinte e seis.
No dia 31 viajamos até a cidade onde mora meu irmão para passarmos o Reveillon, conforme o combinado. A viagem foi muito tranqüila e no primeiro dia até consegui dirigir (após nove meses) o seu carro. P

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sexta-feira, julho 10, 2009 - 22:21
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fabiovillela

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Re: SOBREVIVENDO COM O CÂNCER - PARTE FINAL

Interesting!

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Re: SOBREVIVENDO COM O CÂNCER - PARTE FINAL

OI AMIGO FÁBIO ACABEI DE LER A PARTE FINAL DE SUA HISTORIA DE VIDA E NÃO CONSIGO DEIXAR DE PERGUNTAR PRESENTEMENTE COMO ESTÁ COMO SE SENTE? JÁ CONSEGUIO REALIZAR O SEU DESEJO DA INSTITUIÇÃO PARA AJUDAR AS PESSOAS COM ESSA DOENÇA? ME DESCULPE ESTAS PERGUNTAS AMIGO! MAS SABE QUE ME DESPERTOU PARA O SOFRIMENTO QUE TAL DOENÇA PROVOCA NÓS NO NOSSO EGOISMO SÓ PENSAMOS EM NOSSOS PEQUENOS PROBLEMAS ESQUECENDO ESTES MALES BEM MAIS GRAVES MAS O FÁBIO TEM SIDO UM GUERREIRO DE UMA GRANDE LUTA UM ABRAÇO MUITO APERTADO AMIGO ESTOU CONSIGO SOU FÃ DA SUA GRANDE CORAGEM EMILIA

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