Os Dias Nossos do Isolamento

Os Dias Nossos do Isolamento

Ainda desperto da noite mal dormida a pensar ser engano, um mau sonho ou a encenação brutal e global de uma série de horror da Netflix, “Walking Dead” ou outra bastante pior. Cada dia que acaba é mais e mais difícil, o suportar deste isolamento purgativo, de purgatório e acima de tudo o futuro, a incerteza, a falta de progresso e de promessa no que pode ainda estar para vir e virá a acontecer futuramente, se haverá e há de com certeza haver, um terceiro e quarto recolher obrigatários, aprendemos paulatinamente que tudo pode agravar-se, a ser pior do que já é, do que já foi.
Sou um rebelde por natureza, cultivei e sempre tive uma certeza, algures moldada na revolução de abril, suponho genética a minha rebeldia e insubordinação contra um sistema opressor, que era um facto genérico, teria, a meio da minha incomum vida, um inimigo comum a todos, maligno e contra o qual iria lutar sem tréguas. Para mim, combater o déspota, o fascista, fazia parte dos meus sonhos de criança e adolescente e eu dei, fui dando corpo a esse espírito rebelde e romântico dos Partisans, senti que iria lutar e lutaria pela pátria, pela liberdade se fizesse falta, faria amor barricado atrás das trincheiras, nos tijolos empilhados nas praças, desta ou de outras repúblicas, subiria audaz um estrado improvisado, às costas, nos ombros de outros camaradas e gritaria vitória, vitória ou morte. Sempre me pensei um Hemingway vindouro, nomeado, “pulitzer” do jornalismo de guerra, um revolucionário.
Nada disso ! nas idas ao supermercado sossego e sonego a minha agonia de anarquista triste, não vitorioso, um Trotsky não violento, afeiçoei-me ao rebanho da porta, atrás das grades e aguardo, como que unido a uma manjedoura, respondo à ração diária de alimento ungido por um sacerdote do destino, com uma mão na glande e outra na grade de segurança que me separa do alimento diário, do galinheiro e das galinhas, não penso muito e sujeito-me, que é o que abranda o desconforto do confinamento obrigatório, à comida, à subida do nível de diabetes, o colesterol e a tensão arterial, a falta de vontade de viver, de fazer exercício físico, de correr, à má qualidade da fruta e dos legumes que o meu bolso ainda aguenta, mas logo penso em todos aqueles que vivem nas cidades superpovoadas, em pequenos apartamentos, famílias inteiras, numerosas, partilhando uma sala de estar minimalista, têm de trabalhar “on line”, os dois sem vontade para isso ou para mostrarem algo que não seja indiferença e desamor numa relação tensa, cuidar de uma ou das várias crianças, pequenas e sempre pedindo por atenção ou a estudar e mais o gato e o cão ou cães rosnando, rogando por não sair fora de portas, cansados da voltinha diária, aborrecida e em redor do bairro, da trela presa, do açaime e da máscara de tristeza do dono por muito que ele sonhasse sorrir para a vizinha noutros tempos jeitosa, talvez até a anarquista que faria amor na trincheira, no meio da praça, outrora publica, junto aos fuzis, da revolução armada, aos barris, na barricada dos insurgentes e da granada.
A saturação do ar e das relações familiares, a promiscuidade, faz dos domicílios lugares ainda mais insalubres, tóxicos até, o inverno não atenua esse sofrimento de segunda e possivelmente terceira e quarta vaga, estarmos isolados por meses em moldes de cimento armado, moldados na nossa Augusta angústia, em quadrados e quartos brancos, a pouca luz dos dias propicia a melancolia e a tristeza, um modelo constante, predatório, pausado, sempre igual, de semanas e meses, de horas e minutos, os segundos entrando como farpas na nossa pele, dilacerando a autoestima de quem está impedido, sem poder, sem o deixarem ir ao trabalho e laborar, produzir, ganhar o sustento dele e da família e neste momento, sem conhecer o futuro, o incerto, a incerteza de como pagar as contas do supermercado, a factura da luz, da água, os detergentes, a conta do aquecimento e as propinas da faculdade dos filhos, o arrendamento da casa e de todas as outras primeiras, segundas e terceiras necessidades, para as quais não há, nem jamais haverá perdão nem confinamento, nem volta a dar por mais voltas que à sala eu dê, no dia a dia do nosso constante, severo isolamento profilático.
“O pão nosso de cada dia nos dai hoje”, “livrai-nos das nossas ofensas”, são falácia pré-fabricada, massa mal amassada e o pomo ou a maçã dos nossos pecados, criação versus discórdia, ninguém dá nada a ninguém, nem as mãos, nem a igreja é composta por santos, apenas manhosos pecadores, não assumidos aos sábados e domingos, dias de mercado de gado e até as opiniões são “à vontade do freguês ou a retalho”.
Se bem me lembro, sonhava-me um futuro Hemingway nomeado “pulitzer” do jornalismo de guerra, ou antes ainda, quando me imaginava graduado em revolucionário, tinha opiniões e aspirações tantas e diversas que não me conformo agora, não me ajusto de forma alguma, com a apatia pancreática e recente, talvez sinonimo de alguma velhice, esgotado nesta virulenta, violenta e vexatória forma de recolhimento compulsivo, predatória dos instintos mais básicos de sobrevivência, aliado ao ressurgimento de infames nacionalismos inflamados, movimentos retrógrados, regurgitados dos infernos e que advogam uma politização bastarda, descabida de uma pandemia, ignorando milhares, mesmo milhares de milhões de mortes, apenas para fruírem de algum destaque, de um panfleteiro dogma, semelhante ao “terrapalmismo” que nas redes sociais se espalham, procriam como ratos, espalham-se como a peste, por uma população semianalfabeta, carente de expressão critica, que se vê de um momento para o outro e a si mesma como protagonista e narrador, repentinamente na pele de “influencer” anónima, sem rosto, “you tubers”, alguns ainda imberbes crianças, com todo o terrível ónus desta nova estripe mental numa camada alarmada, deficiente de ideais e cultura, assustada, imbecil, a recita básica, o terreno próspero, fértil para uma temida, concomitante pandemia nacionalista, bera, perigosa que se aproxima.
Os dias do nosso entediamento… (..)

Jorge Santos (31 Janeiro 2021)

https://namastibet.wordpress.com
http://namastibetpoems.blogspot.com

Submited by

Saturday, February 6, 2021 - 21:35

Ministério da Poesia :

Your rating: None Average: 5 (1 vote)

Joel

Joel's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 15 weeks 5 days ago
Joined: 12/20/2009
Posts:
Points: 42284

Comments

Joel's picture

obrigado pela leitura

obrigado pela leitura

Add comment

Login to post comments

other contents of Joel

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Ministério da Poesia/General O Homem é isto. 1 3.470 02/24/2018 - 20:12 Portuguese
Ministério da Poesia/General O frio sentir do meu rosto 1 1.969 02/24/2018 - 10:41 Portuguese
Ministério da Poesia/General Ensaio sobre a mediocridade. 1 2.304 02/24/2018 - 10:40 Portuguese
Ministério da Poesia/General A única felicidade leal é a felicidade dos outros. 1 2.921 02/24/2018 - 10:38 Portuguese
Ministério da Poesia/General Que encanto é o teu. 1 3.115 02/23/2018 - 22:37 Portuguese
Ministério da Poesia/General João Sente-Sóis. 2 2.564 02/23/2018 - 22:32 Portuguese
Ministério da Poesia/General Com o fim de ser feliz. 1 3.680 02/23/2018 - 22:31 Portuguese
Ministério da Poesia/General Poeta em falta. 1 1.935 02/23/2018 - 22:31 Portuguese
Ministério da Poesia/General Pudesse estar eu no caixão comigo ao lado. 1 3.026 02/23/2018 - 22:30 Portuguese
Ministério da Poesia/General Sem dúvida 1 1.693 02/23/2018 - 22:29 Portuguese
Ministério da Poesia/General Imagino Qu’inda o amo. 1 3.257 02/23/2018 - 21:12 Portuguese
Ministério da Poesia/General Que há, pra’lém do sonhar meu… 1 2.005 02/23/2018 - 20:54 Portuguese
Ministério da Poesia/General Medi-mo-nos em braças e em nós… 1 2.592 02/23/2018 - 20:54 Portuguese
Ministério da Poesia/General Longa é a noite em mim… 1 3.535 02/23/2018 - 20:53 Portuguese
Ministério da Poesia/General É desta missão de cifra que sou e padeço… 1 3.799 02/23/2018 - 20:52 Portuguese
Ministério da Poesia/General Tão natural como vim ao mundo 1 2.121 02/23/2018 - 20:52 Portuguese
Ministério da Poesia/General Teorema de Thales 1 3.801 02/23/2018 - 20:51 Portuguese
Ministério da Poesia/General Desfaz da minha alma o novelo 1 3.587 02/23/2018 - 20:50 Portuguese
Ministério da Poesia/General Morcego ou Gente 1 2.951 02/23/2018 - 20:50 Portuguese
Ministério da Poesia/General Imperturbável 1 1.154 02/23/2018 - 20:49 Portuguese
Ministério da Poesia/General Tida 1 1.692 02/23/2018 - 20:47 Portuguese
Ministério da Poesia/General Sem nome 1 3.100 02/23/2018 - 20:46 Portuguese
Ministério da Poesia/General Estou só ou não existo… 1 3.400 02/23/2018 - 20:46 Portuguese
Ministério da Poesia/General Talvez não devesse ter eu emoções sequer… 1 1.892 02/23/2018 - 20:45 Portuguese
Ministério da Poesia/General Outros apontam o dedo 1 1.249 02/23/2018 - 20:45 Portuguese