APÓLOGOS XXVII
27
Os dous gatos
Dous bichanos se encontraram
Sobre uma trapeira um dia:
(Creio que não foi no tempo
Da amorosa gritaria).
De um d'elles todo o conchego
Era dormir no borralho;
O outro em leito de senhora
Tinha mimoso agasalho.
Ao primeiro o dono humilde
Espinhas apenas dava;
Com exquisitos manjares
O segundo se engordava.
Miou, e lambeu-o aquelle
Pelo vêr da sua casta;
Eis que o brutinho orgulhoso
De si com desdem o afasta.
Aguda unha vibrando
Lhe diz: «Grato vil e pobre,
Tens similhante ousadia
Commigo, opulento, e nobre?
«Cuidas que sou como tu ?
Asneirão, quanto te enganas !
Entendes que me sustento
De espinhas, ou barbatanas ?
«Lógro tudo o que desejo,
Dão-me de comer na mão;
Tu lazéras, e dormimos
Eu na cama, e tu no chão.
«Poderás dizer-me a isto
Que nunca te conheci;
lias para vêr que não minto
Basta-me olhar para ti.»
«Ui ! (responde-lhe o gatorro,
Mostrando um ar d'extranheza)
E's mais que eu? Que distincção
Poz em nós a Natureza?
«Tens mais valor? Eis aqui
A occasião de o provar.»
«Nada (acode o cavalheiro)
Eu não costumo brigar.»
«Então (torna-lhe enfadado
O nosso villão-ruim)
Se tu não és mais valente,
Em que és sup'rior a mim?
«Tu não mias?» —«Mio.» —«E sentes
Gosto em pilhar algum rato ?»
«Sim.» — «E o comes?» —«Oh! Se o como !...»
«Logo não passas de um gato.
«Abate, pois, esse orgulho,
Intractavel creatura:
Não tens mais nobreza que eu;
O que tens é mais ventura.»
Submited by
Poesia Consagrada :
- Login to post comments
- 1404 reads
other contents of Bocage
Topic | Title | Replies | Views |
Last Post![]() |
Language | |
---|---|---|---|---|---|---|
Poesia Consagrada/Sonnet | Soneto ao Árcade Lereno | 0 | 2.662 | 11/19/2010 - 16:49 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/Sonnet | Soneto ao Leitão | 0 | 1.894 | 11/19/2010 - 16:49 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/Sonnet | Soneto Arcádico | 0 | 2.087 | 11/19/2010 - 16:49 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/Sonnet | Soneto da Amada Gabada | 0 | 3.569 | 11/19/2010 - 16:49 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/Erotic | A Ulina | 0 | 4.248 | 11/19/2010 - 16:49 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/Meditation | Auto-retrato | 0 | 3.770 | 11/19/2010 - 16:49 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | À morte de Leandro e Hero | 0 | 1.597 | 11/19/2010 - 16:49 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | Cantata à morte de Inês de Castro | 0 | 2.068 | 11/19/2010 - 16:49 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | Cartas de Olinda e Alzira | 0 | 2.425 | 11/19/2010 - 16:49 | Portuguese | |
Poesia/Erotic | Arreitada donzela em fofo leito | 3 | 2.391 | 02/28/2010 - 13:18 | Portuguese | |
Poesia/Erotic | Lá quando em mim perder a humanidade | 1 | 2.225 | 02/28/2010 - 13:15 | Portuguese |
Add comment