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O SEMEADOR DE ESTRELAS
Num reino muito distante, tão distante que uma andorinha, nem à velocidade da luz poderia alcançar, mesmo voando a vida inteira, vivia um pobre lavrador. Chamava-se Seudónio e a sua casinha era humilde, os seus hábitos simples e o seu coração quase tão grande como esse reino distante, tão vasto, que ninguém lhe conhecia as fronteiras.
Era pobre, o sr. Seudónio. Cultivava uns pés de ervilha, uns pés de feijão, alguns alqueires de centeio e uma mão cheia de batatas, no pequeno terreno à volta de sua casa. E vivia disso, sem grandes queixas, sempre com um sorriso e algum pão de sobra para dar a quem lhe passava fome à porta.
Certo dia o sol desse reino distante e vasto arrefeceu... Começou a definhar, a definhar, dizem que do mal dos tempos, e acabou por se extinguir. Mas antes, deixou a cada ser que vivera sob o seu brilho, um quinhão da sua herança: a todos, um por um, no seu derradeiro dia, deixou uma pepita do seu brilho. Cada uma, uma pequena preciosidade cor de ouro afogueado, de textura única, ao mesmo tempo acetinada e quente, ao mesmo tempo fluida e tacteável, ao mesmo tempo brilhante e mate. Um verdadeiro tesouro.
Logo houve quem quisesse vender. E quem quisesse comprar. E quem quisesse guardar. E quem quisesse usar. Cada um fez da sua pepita solar o que bem entendeu: uns, por necessidade ou prodigalidade, trataram de trocá-la por dinheiro, pensando, com ele, comprar talvez uma passagem para outro reino distante, onde houvesse sol. Outros compraram - por ambição e especulação ou, simplesmente, por investimento. Outros guardaram-na, para os descendentes, talvez, ou simplesmente por avareza, bem lá no fundo do baú mais seguro da cave. Outros usaram-na como jóia, em ricos adornos, roupas, acessórios.
O Sr. Seudónio não sabia o que fazer com tamanha preciosidade. Primeiro, trouxe-a no bolso, afagando-lhe o toque de vez em quando, como quem chora de saudade o sol de que ela era feita... Depois colocou-a em cima da mesa da cozinha e deixou-a lá, a iluminar-lhe as noites escuras e frias. Houve quem lha cobiçasse e lha tentasse comprar. Até quem lha tentasse roubar! Sim, porque, desde que o sol não era sol, tinha proliferado um novo tipo de crime: roubar as solgemas alheias (solgema tinha sido o nome dado às pepitas de sol), até matar, por elas!! Mas o Sr. Seudónio tinha todos os cuidados, e, além disso, muita gente lhe respeitava a bondade, lembrando o bom vizinho que ele sempre fora e defendendo-no, se preciso fosse.
Fosse como fosse, a sua solgema lá continuava, exposta na humilde mesa. E, não se sabe se era da amabilidade do Sr. Seudónio, ou se era do calor e da luz que dela emanava, toda a sua casa estava quente e iluminada, sempre, sempre. E ele estava sempre pronto a acolher quem viesse com frio e com falta de luz!...
Mas a sua casa era pequena e os pobres órfãos de sol eram muitos... já quase ninguém tinha a sua pepita: ou por necessidade ou por vício, tinham-na trocado pela escuridão total...
O Sr. Seudónio começou a entristecer-se, por não poder ter uma solgema maior, para ajudar a todos...
...ainda por cima, porque agora, sem o astro outrora rei a brilhar no céu, todas as suas culturas se tinham tornado impossíveis! Não havia ervilhas, feijao, pão, batatas, para partilhar... só a luz da sua maravilhosa pepita de sol!
Uma noite, depois de um cochilo sobre a mesa onde brilhava a pepita, ele acordou com uma idéia salvadora: iria partir a sua solgema em pedacinhos! Era isso! Parti-la-ia em pequenas sementes, que espalharia no seu quinteiro agora infértil, de terra preta e empedernida! Não era ele um semeador? Não fora ele sempre um lavrador de esperanças? E sorriu, com a recordação grata da emoção de o ser: um semeador de esperanças - sementes que ele deitava à terra e cuidava diligentemente, até ter a alegria de as ver despontar em rebentos novinhos e cheios de vida nova!
Se bem o pensou, assim o fez: pegou num martelo velho e triturou a solgema em mil pedacinhos. Depois, pela noite infindável fora, foi espalhando na terra negra do seu terreno as sementes miudinhas.
E aconteceu uma coisa estranha... o seu quinhão de terra acabou, ele passou ao quintal do seu vizinho, depois de outro, e de outro... e os grãos luminosos não acabavam nunca!...
Andou, andou, andou, sempre semeando luz e brilhos, até que notou que vinha uma multidão em burburinho atrás dele. A princípio não entendia o que diziam, ou o que queriam, mas com a proximidade, foi percebendo que se revoltavam contra ele. Vinham armados, de mangas arregaçadas, com os olhos raiados de sangue, furiosos. Gritavam que ele não tinha o direito de esbanjar a solgema assim, enterrando-a na terra, gratuitamente. Que ele era um sovina, um velho louco, um somítico caquético. Que era desumano e cruel, por ter preferido dissipar o pouco que lhes restava, a pepita a que ele, em generosidade, os deixava aquecer...
Mataram-no, cegos, ímpios.
Tentaram roubar-lhe os restos de sementes, mas elas tinham-se colado às suas mãos, e foi impossível desagregá-las e reparti-las.
Enterraram-no mesmo ali, juntamente com elas, por
vingança e maldade...
Horas depois, talvez tantas quanto dura uma noite, um pequeno broto de sol rompeu a terra, no sítio exacto onde repousava, sob ela, a mão do bom Seudónio. Um pequeno astro quente e brilhante foi nascendo devagarindo, inundando o reino de luz... Subiu, subiu, cresceu e fez-se Sol.
Já era dia alto quando os mesmos que cometeram a atrocidade acordaram e perceberam.
E nessa noite, maravilhados, tremeram ainda mais de fé e arrependimento, quando viram pequenos pontos de luz subirem das suas terras e elevarem-se ao céu...
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