Fernando Pessoa- O livro do desassossego ( IV )

Os que verdadeiramente sofrem não fazem plebe, não formam conjunto. O que sofre sofre só.

Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos, e a outros a escravidão é dada. O amor cobarde que todos temos à liberdade é o verdadeiro sinal do peso da nossa escravidão.

Tudo é nós, e nós somos tudo; mas de que serve isto, se tudo é nada?

Tudo quanto buscamos, buscamos por uma ambição, mas essa ambição ou não se atinge, e somos pobres, ou julgamos que a atingimos, e somos loucos ricos.

Sábio é quem monotoniza a existência, pois então em cada pequeno incidente tem um privilégio de maravilha.

Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa não poderia imaginar.

A ladeira leva ao moinho, mas o esforço não leva a nada.

Sou uma casa viúva, claustral de si mesma, sombreada de espectros tímidos e furtivos. Estou sempre no quarto ao lado … Divago e encontro, encontro porque divago.

Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensatos e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio; a incapacidade de pensar, a anormalidade, e a híper-excitação.

Sou qualquer coisa que fui. Não me encontro onde me sinto e se me procuro, não sei quem é que me procura.

O meu tédio assume aspectos de horror; o meu aborrecimento é um medo. O meu suor não é frio, mas é fria a minha consciência do meu suor.

É tão magno o tédio, tão soberano o horror de estar vivo, que não concebo que coisa haja que pudesse servir de lenitivo, de antídoto, de bálsamo ou esquecimento para ele. Dormir horroriza-me como tudo. Morrer horroriza-me como tudo. Ir e parar são a mesma coisa impossível. Esperar e descrever equivalem-se em frio e cinza.

Despreza tudo, mas de modo que o desprezar te não incomode. Não te julgues superior ao desprezares. A arte do desprezo nobre está nisso.

Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem.

Jazo a vida: Nada de mim interrompe nada.

Repugno a vida real como uma condenação, repugno o sonho como uma libertação ignóbil.

Sou como um escravo que se embebeda à sesta- duas misérias em um só corpo.

O homem vulgar, por mais dura que lhe seja a vida, tem ao menos a felicidade de não a pensar.

Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é sentido para se escrever que se sentiu.

A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Tudo está mais vazio do que o vácuo. É tudo uma caos de coisas nenhumas.

Os epilépticos são, na crise, fortíssimos; os paranoicos raciocinam como poucos homens normais conseguem discorrer; os delirantes com mania religiosa agregam multidões de crentes como poucos demagogos as agregam, e com uma força intima que estes não lograram dar aos seus sequazes.

Prefiro a derrota com o conhecimento das flores que a vitória no meio dos desertos, cheia de cegueira da alma a sós com a sua nulidade separada.

Um dia, no fim do conhecimento das coisas, abrir-se-á a porta do fundo e tudo e tudo o que fomos – lixo de estrelas e de almas – será varrido para fora da casa, para o que há recomece.

Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstrata e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também.

Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão.
Sou altamente sociável de um modo altamente negativo.

A alma que é dada ao indivíduo não deve ser emprestada ás suas relações com os outros. O facto divino de existir não dever ser entregue ao facto satânico de existir.

Ter opiniões é estar vendido a si mesmo. Não ter opiniões é existir. Ter todas as opiniões é ser poeta.

http://topeneda.blogspot.pt/

Submited by

Thursday, November 1, 2012 - 14:02

Poesia :

No votes yet

topeneda

topeneda's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 10 weeks 14 hours ago
Joined: 08/12/2011
Posts:
Points: 4308

Add comment

Login to post comments

other contents of topeneda

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Musica/Poetry Os Putos 0 6.666 09/29/2011 - 17:28 Portuguese
Musica/Other Laurindinha 0 7.018 09/28/2011 - 21:22 Portuguese
Musica/Poetry Lágrima 0 6.740 09/28/2011 - 21:17 Portuguese
Musica/Poetry A Casa da Maraquinhas 0 7.671 09/28/2011 - 21:08 Portuguese
Musica/Poetry Trova do vento que passa 0 7.123 09/28/2011 - 20:58 Portuguese
Musica/Other Verdes anos 0 6.160 09/28/2011 - 20:42 Portuguese
Musica/Poetry Ser Poeta (Perdidamente) 0 7.961 09/28/2011 - 20:26 Portuguese
Musica/Poetry Pedra Filosofal 0 7.176 09/28/2011 - 20:09 Portuguese
Poesia/Thoughts Cultivar a virtude 6 5.585 09/24/2011 - 10:39 Portuguese
Poesia/Thoughts Vítimas da inércia 2 4.196 09/22/2011 - 08:03 Portuguese
Poesia/Thoughts Péssimos a pensar a espécie humana 0 5.236 09/21/2011 - 08:30 Portuguese
Poesia/Thoughts _Do berço para a cova (atualizado) 2 6.848 09/20/2011 - 16:48 Portuguese
Poesia/Thoughts Do berço para a cova 0 6.708 09/19/2011 - 08:18 Portuguese
Poesia/Thoughts Caiu o título e...as "palavras são como as cerejas"(atualização II) 0 5.648 09/18/2011 - 13:22 Portuguese
Poesia/Thoughts Acordar num manicómio (atualizado) 0 3.772 09/18/2011 - 11:15 Portuguese
Poesia/Thoughts O ultimo filho lol 1 3.316 09/15/2011 - 23:02 Portuguese
Poesia/Thoughts O irmão ainda mais novo 0 4.947 09/15/2011 - 21:12 Portuguese
Poesia/Thoughts Sexo Divino 0 3.950 09/15/2011 - 19:05 Portuguese
Poesia/Thoughts Remédio eficaz 7 5.050 09/07/2011 - 18:34 Portuguese
Poesia/Thoughts Vingança 0 3.905 09/07/2011 - 16:40 Portuguese
Poesia/Thoughts Mau olhado 0 4.173 09/06/2011 - 12:47 Portuguese
Poesia/Thoughts A Inveja pode ser algo bom 0 4.697 09/06/2011 - 12:45 Portuguese
Poesia/Thoughts Ganhar o mundo, entregar a alma 0 5.461 09/05/2011 - 19:47 Portuguese
Poesia/Thoughts O mais fraco não sobrevive 0 3.239 09/02/2011 - 09:00 Portuguese
Poesia/Thoughts Oportunidade de ressuscitar 3 3.884 08/31/2011 - 10:23 Portuguese