Fernando Pessoa- O livro do desassossego ( V )
Nunca aprendi a existir. Tudo o que quero consigo, logo que seja dentro de mim.
Sem mim, o sol nasce e se apaga; sem mim a chuva cia e o vento geme.
Estátua interior sem contornos, sonho exterior sem ser sonhado.
…esse episódio de imaginação a que chamamos realidade.
Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer.
Quando julgo que recordo, é outra coisa que penso, que vejo, ignoro, e quando me distraio, nitidamente vejo.
Ler é sonhar pela mão de outrem. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo.
Há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve.
Não quero ter alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte da passagem entre o que não tenho e o que não quero.
Podemos morrer se apenas amámos.
Amarem-no cansava-o.
Sobre as emoções tenho curiosidade. Sobre os factos, quaisquer que venham a ser, não tenho curiosidade alguma.
Nenhum prémio certo tem virtude, nenhum castigo certo o pecado.
A vida é a busca do impossível através do inútil.
A alma humana é um manicómio de caricaturas. Se uma lama pudesse revelar-se com verdade, nem houvesse um pudor mais profundo que todas as vergonhas conhecidas e definidas, seria, como dizem da verdade, um poço, mas um poço sinistro cheio de ecos vagos, habitado por vidas ignóbeis, viscosidades sem vida, lesmas sem ser, ranho da subjectividade.
Perco-me se me encontro, duvido se acho, não tenho se obtive.
A sede de ser completo deixou-me neste estado de mágoa inútil.
Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento.
E, assim, alheios à solenidade de todos os mundos, indiferentes ao divino e desprezadores do humano, entregamo-nos futilmente à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo subtilizado, como convém aos nossos nervos cerebrais.
Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico, e essa atitude é um exagero e um incómodo.
Não posso ler, porque a minha crítica híper-acesa não descortina senão defeitos, imperfeições, possibilidades de melhor. Não posso sonhar, porque sinto o sonho tão vivamente que o comparo com a realidade, de modo que sinto logo que ele não é real, e assim o seu valor desaparece.
A existência do mal não pode ser negada, mas a maldade da existência do mal pode não ser aceite.
Ninguém se amaria a si mesmo se deveras se conhecesse, e assim não havendo a vaidade, que é o sangue da vida espiritual, morreríamos na alma de anemia.
A vida que se vive é um desentendimento fluido, uma média alegre entre a grandeza que não há e a felicidade que não pode haver.
O pensamento pode ter levação sem ter inteligência, e, na proporção em que não tiver elegância, perderá a acção sobre os outros.
A força sem a destreza é uma simples massa.
A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte – uma que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirige à nossa lama atenta. A primeira é a poesia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na própria estrutura; e a segunda começa a mentir na própria intenção. Uma pretende dár-nos a verdade por meio linhas variadamente regradas, que mentem à inércia da fala; outra pretende dár-nos a verdade por uma realidade que todos sabemos bem que nunca houve.
Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se não escreveu.
http://topeneda.blogspot.pt/
Submited by
Poesia :
- Login to post comments
- 4647 reads
Add comment
other contents of topeneda
Topic | Title | Replies | Views |
Last Post![]() |
Language | |
---|---|---|---|---|---|---|
![]() |
Musica/Other | Mal por mal | 0 | 3.772 | 01/12/2012 - 23:56 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Um contra o outro | 0 | 3.875 | 01/12/2012 - 23:52 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Sem Noção | 0 | 3.597 | 01/12/2012 - 23:48 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Passou por mim | 0 | 3.606 | 01/12/2012 - 23:43 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Patinho de borracha | 0 | 3.734 | 01/12/2012 - 23:38 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Contado nínguém acredita | 0 | 3.615 | 01/12/2012 - 23:33 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Não tenho mais razões | 0 | 4.479 | 01/12/2012 - 23:28 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Triologia portuguesa | 0 | 3.780 | 01/07/2012 - 01:21 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Inocente o doente | 0 | 2.450 | 01/07/2012 - 01:17 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Outra rodada | 0 | 4.060 | 01/07/2012 - 01:13 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Pratos da Balança | 0 | 3.767 | 01/07/2012 - 01:10 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Ponto de não retorno | 0 | 3.335 | 01/07/2012 - 01:06 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Caixote do lixo | 0 | 4.046 | 01/07/2012 - 01:03 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Traumatismo Ucraniano | 0 | 3.368 | 01/07/2012 - 00:59 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Entrecosto Emocional | 0 | 1.556 | 01/07/2012 - 00:54 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Carreira de sucesso | 0 | 4.138 | 01/07/2012 - 00:51 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Odisseia Hospitalar | 0 | 2.959 | 01/07/2012 - 00:47 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Learn Portuguese With António | 0 | 2.509 | 01/07/2012 - 00:43 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Putas Ao Poder | 0 | 4.419 | 01/07/2012 - 00:39 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Deus Pátria E Família | 0 | 3.779 | 01/03/2012 - 19:10 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Tudo vai acabar mal | 0 | 7.243 | 01/03/2012 - 19:04 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Sementes do ódio | 0 | 4.099 | 01/03/2012 - 19:01 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | dados | 0 | 3.823 | 01/03/2012 - 18:58 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Rei da Noite | 0 | 3.682 | 01/03/2012 - 18:51 | Portuguese |
![]() |
Musica/Other | Estou-me a cagar | 0 | 2.679 | 01/03/2012 - 18:47 | Portuguese |
Comments
interiorizações
(re)ler Pessoa é viajar conti_nua_mente
à descoberta do nosso interior humano e poético.
Quem não se redescobre em cada dia, será sempre incompleto,
muito mais incompleto que aquilo que deveria ser.
Um abraç0o
Abilio