Campo de Batalha (Tomaz Kim)

 
1.

A noite, porém, rangeu e quebrou:

Viajantes clandestinos,
à procura de uma estrela mais distante,
quedaram-se emudecidos.

Apodreceu a carne, rangeram os ossos
e os dias escorreram, viscosos, iguais.

Estéril, a vida continuou:
a fome, a peste, a guerra – a morte!

2.

Secam as fontes e os rios,
ardem as searas e a nossa casa
e as árvores nuas amaldiçoam o céu,
sem sabermos porquê.

Morrem os jovens antes de se amarem
e os poetas com os poemas inacabados
e as crianças olhando espantadas para o céu,
sem saberem porquê.

Um vento noturno deixou insepultos
ventres e seios e desejos de maternidade
nunca realizados,
e secou risos e cantares subindo para o céu,
sem sabermos porquê.

Andam as guerras pelo mundo:
somente possuímos uma voz, uma voz
e essa voz não se calará
e nós sabemos porquê!

3.

Antes da metralha e do medo e da morte,
antes de um corpo jovem, anônimo, apodrecer
esquecido à chuva e ao vento,
ou singrar, boiando, na água mansa,
ou se despedaçar contra o céu indiferente...

Antes do pavor e do pranto e da prece,
um adeus longo e triste
aos poemas no fundo da gaveta,
e à renúncia ao teu amor brando
e às noites calmas e ao sonho inacabado...

Antes da morte sem-mistério,
um adeus longo e triste
à luta de que não se partilhou!...

4.
Longe, a bala rasgando o luar;
longe, o corpo caindo;
longe, o sangue, vermelho e morno e espesso.

Aqui, à face desta lua e da noite,
iguais às outras luas e às outras noites,
iguais como o sangue vermelho e morno e espesso
dos homens ...

Aqui,
oculto e surdo e retido,
o sangue,
vermelho e morno e espesso,
igual!

5.

As feridas abrem-se
para o céu distante na sua impassibilidade
e destilam as sete pragas
que desabaram
sobre o ventre das nossas mulheres
e o sonho dos nossos filhos
e a nossa seara e olival.

É da glória que nascem os vermes;
e as estrelas,
de mil pedaços ensanguentados,
subindo a noite vertical!

6.

Esta carne envilecida e santa,
a gerar os prados e a nuvem e a chuva,
levada pelo sol e pelo vento...

Esta carne envilecida e santa,
apodrecendo em todas as latitudes,
presente na angústia da noite devastada...

Esta carne envilecida e santa,
forçada a negar a verdade pressentida,
ecoando os versos dos poetas desconhecidos...

Esta carne envilecida e santa,
abrindo-se em flor aos quatro cavaleiros,
é o homem
e a vida breve!

 

Tomaz Kim, poeta português, no poema que retrata os horrores da guerra, escrito em 1949. Fonte: Silva, A. C. & Bueno, A., orgs. 1999. Antologia da poesia portuguesa contemporânea. RJ, Lacerda Editores.
 

Submited by

Miércoles, Julio 13, 2011 - 11:09

Poesia :

Sin votos aún

AjAraujo

Imagen de AjAraujo
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 6 años 2 semanas
Integró: 10/29/2009
Posts:
Points: 15584

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of AjAraujo

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia/Poetrix Poemas - de "Magma" (Guimarães Rosa) 2 23.469 06/11/2019 - 11:48 Portuguese
Videos/Musica Ave Maria - Schubert (Andre Rieu & Mirusia Louwerse) 1 44.870 06/11/2019 - 11:02 Inglés
Poesia/Fantasía Cabelos de fogo 0 4.207 04/28/2018 - 21:38 Portuguese
Poesia/Dedicada A criança dentro de ti 0 3.059 04/28/2018 - 21:20 Portuguese
Poesia/Pensamientos O porto espiritual 0 4.174 04/28/2018 - 21:00 Portuguese
Poesia/Dedicada Ano Novo (Ferreira Gullar) 1 3.239 02/20/2018 - 19:17 Portuguese
Prosas/Drama Os ninguéns (Eduardo Galeano) 0 3.919 12/31/2017 - 19:09 Portuguese
Poesia/Dedicada Passagem de ano (Carlos Drummond de Andrade) 0 4.534 12/31/2017 - 18:59 Portuguese
Prosas/Contos Um conto de dor e neve (AjAraujo) 0 5.517 12/20/2016 - 11:42 Portuguese
Prosas/Contos Conto de Natal (Rubem Braga) 0 5.242 12/20/2016 - 11:28 Portuguese
Prosas/Contos A mensagem na garrafa - conto de Natal (AjAraujo) 0 6.137 12/04/2016 - 13:46 Portuguese
Poesia/Intervención Educar não é... castigar (AjAraujo) 0 3.289 07/08/2016 - 00:54 Portuguese
Poesia/Intervención Dois Anjos (Gabriela Mistral) 0 5.996 08/04/2015 - 23:50 Portuguese
Poesia/Dedicada Fonte (Gabriela Mistral) 0 4.177 08/04/2015 - 22:58 Portuguese
Poesia/Meditación O Hino Cotidiano (Gabriela Mistral) 0 5.014 08/04/2015 - 22:52 Portuguese
Poesia/Pensamientos As portas não são obstáculos, mas diferentes passagens (Içami Tiba) 0 5.031 08/02/2015 - 23:48 Portuguese
Poesia/Dedicada Pétalas sobre o ataúde - a história de Pâmela (microconto) 0 6.087 03/30/2015 - 11:56 Portuguese
Poesia/Dedicada Ode para a rendição de uma infância perdida 0 5.818 03/30/2015 - 11:45 Portuguese
Poesia/Tristeza Entre luzes e penumbras 0 4.289 03/30/2015 - 11:39 Portuguese
Poesia/Tristeza No desfiladeiro 1 6.438 07/26/2014 - 00:09 Portuguese
Poesia/Intervención Sinais da história 0 4.267 07/17/2014 - 00:54 Portuguese
Poesia/Fantasía E você ainda acha pouco? 0 5.240 07/17/2014 - 00:51 Portuguese
Poesia/Aforismo Descanso eterno 2 5.655 07/03/2014 - 22:28 Portuguese
Poesia/Intervención Paisagem (Charles Baudelaire) 0 5.455 07/03/2014 - 03:16 Portuguese
Poesia/Meditación Elevação (Charles Baudelaire) 0 5.386 07/03/2014 - 03:05 Portuguese