A Crueldade de Pilatos

Vivemos num mundo em que viver não é fácil, quando esse acto pressupõe usufruir de uma elevada qualidade de vida, bem-estar e felicidade. Somos seres biologicamente orgânicos e essencialmente sociais. Dependemos de outros seres humanos para desenvolvermos e realizarmos todas as potencialidades com as quais nascemos e também para sobreviver enquanto espécie. Desde que somos recém-nascidos que vivemos expostos a ameaças do exterior e nos tornarmos alvo dos mais variados cuidados. Quer sejamos crianças, adolescentes ou adultos, percepcionamos o mundo de uma forma particular e acreditamos ser percepcionados por ele. Somos criaturas emocionais e pensantes, utilizamos um padrão cultural ou modo de vida que orienta as escolhas que fazemos neste mundo belo e enigmático. Tal como há várias culturas, há vários modos de vida que devem ser considerados aceitáveis por funcionarem no contexto em que são aplicados. Em vez de uma visão segregacionista devemos relativizar tudo o que nos acontece e ter uma visão integrativa dos factos. Por vezes, somos tentados a construir dentro de nós próprios um mundo utópico: de justiça, alegria e harmonia, que difere da realidade. Podemos eventualmente ficar abatidos se não virmos este mundo interior tomar proporções efectivas e os sonhos desmoronarem-se como um barulho de cartas. É num estado de de desespero extremo, de impotência de mudar a nossa vida ou então na esperança de ir para um mundo melhor que se cometem os suicídios; em que um determinado indivíduo põe fim intencionalmente à própria vida. Uma das camadas populacionais que mais está em perigo é a jovem, o que não é de admirar visto que os adolescentes sofrem profundas mudanças físicas, emocionais, psicológicas e sociais num relativamente curto espaço de tempo. Sentem ainda medo de serem rejeitados, de falharem nos seus objectivos, de viverem de forma autónoma. Enfim, um adolescente é claramente susceptível de sofrer desordens emocionais de grau variado. Existem mais suicídios da parte de homens do que de mulheres já que os homens escolhem “instrumentos” ou tipos para esta prática mais eficazes como o uso de revólveres, facas ou através de enforcamentos. Os três países com as mais elevadas taxas de suicido são a Lituânia, a Rússia e Belarus. O Japão apresenta a mais alta taxa do mundo industrializado. Como explicar um acto como o do suicídio? Hoje em dia vivemos numa sociedade capitalista, consumista e obcecada pela estética em que a solidão, a frieza e a indiferença parecem preponderar. A distância e o triunfo no trabalho ditam as regras e tudo o mais que exija uma maior profundidade, interiorização e gratificação é deitado fora como se de produto descartável se tratasse. Há ausência de bons tratos. O sofrimento é uma força poderosa que ecoa por toda a parte, seja num funeral em que se choram os que partem, seja numa vida monótona e triste para a qual não se encontra sentido ou num acto violento que tudo dissolve completamente. Como é bem sabido para todos os cristãos, Pôncio Pilatos foi um procurador da província romana da Judeia que se distinguiu na História por ter sido o juiz que, após ter lavado as mãos, condenou Jesus a morrer na Cruz, apesar de não ver nele nenhuma culpa. É isso que muitas vezes andamos a fazer uns aos outros. Somos capazes de ouvir as histórias mais tristes, de confortar os corações mais destroçados mas lavamos as mãos primeiro. É mais seguro para nós ouvirmos com uma postura atenta mas ausente e dizermos umas poucas palavras para ajudar a pessoa, sem imaginar que o mesmo nos pode acontecer a nós. Sem compreendermos realmente as coisas. As taxas recentes de suicídio corroboram a ideia de que devemos fazer um melhor tratamento do outro. Tentar curá-lo. Aliviá-lo. Prender as raízes que constituem a sua pessoa bem dentro do solo eternamente fértil que é a vida humana. Tudo pode melhorar se nos restringirmos a coisas simples como dizer um bom dia ao vizinho, sorrir para um estranho que esteja ao nosso lado na fila do autocarro, conversar com bons amigos, exercermos uma profissão que nos deixe felizes; porque é isso que devemos procurar. A dor está por toda a parte. Persiste. Soa. Silencia. Chega. Desvanece-se. Errar é humano e ter dor nas nossas vidas também o é. Mas mais doloroso que a crueldade que presenciamos todos os dias é não expressar as nossas emoções, não nos deixarmos levar nem alertar as outras pessoas para o que está errado. É a crueldade das pessoas que não se importam. A crueldade de Pilatos.