O drama da infância em 3 atos.

Parte I - As crianças e seus sonhos

O que morreu em mim?
Será a paixão solitária,
Será a beleza falsária,
Será a terra imaginária,

O que morreu em meu povo?
Será a paixão juvenil, canto de ária,
Será a sensação libertária,
Será a ilusão passageira,

O que morreu no meu mundo?
Será a palavra que transforma,
Será a lava que solidifica,
Será a terra que alimenta (mata a fome),

O que morreu na gente, não sei direito
Todavia, na criança ainda não pereceu
O sorriso, a inocência, o amor pueril
Que um dia, em cada um de nós, esteve presente.

Porque morre a criança em botão?
Se pensamos levar à vida adulta ao desfecho final
Quando ela já se encontra abatida, desnutrida,
Antes mesmo de nascer, com indefeso pássaro caçado.

II - Violência social: a criança, sua maior vítima

Porque entregar uma arma

a este inofensivo ser em formação

"destruir a nossa própria semente,
o preço do pão alimento,
na bala de fogo,
que corre silente,
a exterminar: campos, vales,
templos, lares e mentes..."

Morre a criança, a flor em broto
Murchou na seca do ódio
Que a ganância traz
e a ambição faz

Algumas morrem no ventre
Outras no berço de fome
Como anjos docemente a sonhar
Com lagos, prados, fontes, a brincar

Há aquelas que morrem no chão,
Agredidas, violentadas, fuziladas
e apenas queriam amor, lar e pão
Pela omissão do estado e das famílias

E, porque não admitir repulsa social
Do cidadão comum ou policial
exterminadores da infância
armas em punho somadas à intolerância

Parte III - Sobreviver em meio ao caos, abandono.

O que as crianças é possível sonhar?

É com o direito ao ensino, como aprendizado
É com o direito a um lar, sem ser escravizada
É com o direito a cidadania, sem ser subjugada

O que é lastimável é ver pelas ruas,
Irresponsáveis reprodutores sugando suas crias
Pelos sinais, vivendo da escravitude
E "educando" na vicissitude

À noite, sujas, famintas e desamparadas
se enrolam em cobertores de jornal ou papelão,
embaixo das marquises e passarelas
ou cansadas subindo as ladeiras do morro

O que lhes foi negado?
Os sonhos, o crescimento, as oportunidades,
O que lhes foi legado?
Os três "D": doenças, desnutrição, drogas

E assim, seguem ao futuro indiferentes
E ao olhar dos transeuntes
Adianta chorar na nau dos desamparados?
Que força buscar nos corpos enregelados?

O que nos diferencia do Haiti, África ou Índia?
Se padecer da fome é também um "mal" universal
Se de abalos do corpo, trêmulos na sua globalidade
Insistem em sobreviver e resistir em tenra idade?

E mal saem de um buraco, entram em outro
Fundo como todas as suas desgraças, suspiram
Num último adeus, só resta um consolo
.
Alimentar a vasta gama de germes que abrigam.
.

AjAraújo, o poeta humanista, reflete sobre o maior dos dramas sociais do planeta: o abandono e extermínio de nossas crianças, especialmente aquelas nascidas na miséria, esquecidas pelas ruas, escrito em novembro de 1975, revisitado em fevereiro de 2010.

Submited by

Tuesday, February 2, 2010 - 13:09

Poesia :

No votes yet

AjAraujo

AjAraujo's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 7 years 17 weeks ago
Joined: 10/29/2009
Posts:
Points: 15584

Comments

AjAraujo's picture

O que nos diferencia do

O que nos diferencia do Haiti, África ou Índia?
Se padecer da fome é também um "mal" universal
Se de abalos do corpo, trêmulos na sua globalidade
Insistem em sobreviver e resistir em tenra idade?

RobertoEstevesdaFonseca's picture

Re: O drama da infância em 3 atos.

Poema de grande intensidade!

Gostei de verdade!

Um abraço,
REF

MarneDulinski's picture

Re: O drama da infância em 3 atos.

MUITO ÚTIL E BOM SEU POEMA!
QUE AS AUTORIDADES, GOVERNOS, POLÍTICOS JUÍZES, E FALSOS OU VERDADEIROS RELIGIOSOS, VEJAM E LEIAM ESTE SEU BELO POEMA!
O que é lastimável é ver pelas ruas,
Irresponsáveis reprodutores sugando suas crias
Pelos sinais, vivendo da escravitude
E "educando" na vicissitude

Meus cumprimentos,
Marne

AjAraujo's picture

Re: O drama da infância em 3 atos.

Obrigado, Marne.
A propósito, gostaria de sondá-lo a respeito de um prefácio de um livro que pretendo lançar sobre temas humanitários. Seria um grande privilégio para mim, sua leitura atenta e comentários.

Add comment

Login to post comments

other contents of AjAraujo

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Intervention Hora (Sophia de Mello Breyner) 0 9.714 08/30/2011 - 11:17 Portuguese
Videos/Poetry Me Leve, de Ferreira Gullar (Fagner) 0 4.157 08/30/2011 - 03:38 Portuguese
Videos/Poetry Traduzir-se, de Ferreira Gullar (Chico Buarque & Fagner) 0 7.811 08/30/2011 - 03:33 Portuguese
Videos/Music Revelação (Fagner) 0 4.582 08/30/2011 - 03:31 Portuguese
Videos/Poetry Motivos, de Cecília Meireles (Fagner) 0 3.557 08/30/2011 - 03:26 Portuguese
Videos/Poetry Canteiros, de Cecília Meireles (Fagner) 0 7.091 08/30/2011 - 03:23 Portuguese
Videos/Poetry Retrato, de Cecília Meireles (Paulo Autran) 0 5.522 08/30/2011 - 03:20 Portuguese
Videos/Poetry Quero, de Carlos Drummond de Andrade (Paulo Autran) 0 4.049 08/30/2011 - 03:16 Portuguese
Videos/Poetry E agora José (Carlos Drummond de Andrade) 0 5.353 08/30/2011 - 03:10 Portuguese
Videos/Poetry Amor e seu tempo (Carlos Drummond de Andrade) 0 3.229 08/30/2011 - 03:04 Portuguese
Videos/Poetry Para Sempre (Carlos Drummond de Andrade) 0 5.781 08/30/2011 - 03:02 Portuguese
Videos/Poetry Recomeçar (Carlos Drummond de Andrade) 0 8.423 08/30/2011 - 02:56 Portuguese
Videos/Poetry Eterno (Carlos Drummond de Andrade) 0 6.356 08/30/2011 - 02:52 Portuguese
Poesia/Love Espaço curvo e finito (José Saramago) 0 3.469 08/30/2011 - 02:39 Portuguese
Poesia/Dedicated Poema para Luis de Camões (José Saramago) 0 721 08/30/2011 - 02:36 Portuguese
Poesia/Meditation Science-Fiction I (José Saramago) 0 1.202 08/30/2011 - 02:32 Portuguese
Poesia/Meditation Fala do Velho Restelo ao Astronauta (José Saramago) 0 1.105 08/30/2011 - 02:30 Portuguese
Poesia/Meditation Na ilha por vezes habitada (José Saramago) 0 2.009 08/30/2011 - 02:26 Portuguese
Poesia/Meditation O bonde tombou em Santa Teresa: crônica de uma morte anunciada 0 4.294 08/29/2011 - 00:38 Portuguese
Poesia/Text Files Biografia: Ossip Mandelstam(1891-1938), poeta russo. 0 12.421 08/28/2011 - 21:01 Portuguese
Poesia/Aphorism Esquece o pássaro agreste, 0 503 08/28/2011 - 20:49 Portuguese
Poesia/Intervention O corpo me é dado e com que fim? (Ossip Mandelstam) 0 2.605 08/28/2011 - 20:45 Portuguese
Poesia/Intervention Eu não podia sentir no nevoeiro (Ossip Mandelstam) 0 9.342 08/28/2011 - 20:42 Portuguese
Poesia/Aphorism Rosa do Mundo (Ossip Mandelstam) 0 2.802 08/28/2011 - 20:34 Portuguese
Poesia/Dedicated Leningrado (Ossip Mandelstam) 0 3.998 08/28/2011 - 20:24 Portuguese