A Noite do Homem
O dia cava distância, engolindo a montanha, arrastando a luz para a encosta do lado oposto. Pelo lusco-fusco espreguiçam-se as asas, sacode-se a inércia, sopram-se os bocejos ao encontro dos suspiros do vulcão.
É hora de velar, é o retorno à batalha contra as execráveis bestas do caos. Despenha-se o senhor dos céus, roda a Terra, roda a fortuna, roda a ignorância que se alimenta na escuridão. Todas as noites são lavouras de receios, sementeiras de dúvidas, espasmos salteadores da lógica. Soçobra o coração em trabalhos redobrados!
Enquanto reina a alvura, tudo se vence, muito nos convence na força e na intransigência de lutar e alcançar; assim que esmorece a claridade, pouco subsiste dos impérios da tarde serena e do amanhecer promissor. Cresce a sombra da tibieza, recuam as certezas, encolhem-se para lugares perdidos. E o que nos resta? O coração! O sofrido, patente de cicatrizes, coração. Paladino final, último resistente, baluarte que sustenta a união de tantos fragmentos que nos dão a forma pontilhada, os mil estados cosidos sobre um mesmo território, um mesmo corpo, um mesmo cadáver.
Não é que o coração seja menos cego do que a razão, na noite do Homem. Todavia, assume-se quando nada mais se ergue. Esforçado, afoito, consegue ver o mundo das trevas olhando-o de vistas cerradas, sentindo-o, intuindo-o, perscrutando-o. A razão apenas é clarividente em tempos de positivismo, de acalmia, de equilíbrio, de dia.
E quando se rasgam os céus azuis e deles vibram as desbotadas trompas da desgraça, quando caem do alto os negros calabouços da solidão, arrepela-te coração, temos de segurar com valentia a corda com que os demónios nos puxam para os infernos da vida; E quando, desses buracos suspensos – passagens francas para os abismos apocalípticos do ser – saem famintas as horríveis criaturas do nosso terror para nos abocanham lentamente, rapinando pequenos pedaços da crença, apresta coração, temos de desbaratar as hordas maléficas e rechaça-las para os lúgubres e perniciosos ninhos de onde medraram; E quando os sonhos tombam por entre névoas de crua agonia e esmiuçado sofrimento, perseguidos por necrófagos alados, desentorpeça as asas coração, temos de os recolher dos ares nefastos e colocar a salvo em santuário intransponível (talvez um dia tenham uma oportunidade…).
E quando a noite for omnipresente, tirana, inclemente e eu já nada suspirar, já a nada aspirar. Quando eu me entregar ao mal que há em mim, ao mal com que me contagiaram, estrebucha coração, estarás só. Impõe-te na condução do azar, ataca, irrompe pela noite do Homem como um cometa, com labaredas de purgação, calcinando as chagas, a dor, a podridão que grassam pelos confins do senhorio. Mata a peste da tristeza, chacina o diabo da capitulação, desbarata os inimigos que me trouxeram a guerra às fronteiras... governa o lar durante o meu exílio.
Andarilhus “(º0º)”
XXIX : IX : MMVIII
Submited by
Prosas :
- Login to post comments
- 1056 reads
Add comment
other contents of Andarilhus
Topic | Title | Replies | Views |
Last Post![]() |
Language | |
---|---|---|---|---|---|---|
Poesia/Aphorism | Despertar | 1 | 925 | 05/23/2008 - 22:46 | Portuguese | |
Prosas/Others | As Mutações da Máscara | 3 | 1.066 | 05/19/2008 - 18:58 | Portuguese | |
Prosas/Ficção Cientifica | Yoanna | 4 | 1.456 | 05/16/2008 - 22:39 | Portuguese | |
Prosas/Contos | Desfazer o Mundo | 4 | 1.113 | 05/13/2008 - 01:28 | Portuguese | |
Poesia/Disillusion | Das certezas II | 5 | 987 | 05/10/2008 - 21:20 | Portuguese | |
Poesia/Meditation | Das Certezas | 4 | 782 | 05/09/2008 - 23:43 | Portuguese | |
Prosas/Others | Rosa-dos-ventos | 2 | 1.052 | 05/07/2008 - 00:50 | Portuguese | |
Poesia/Passion | Ao Vento | 1 | 1.109 | 04/23/2008 - 23:27 | Portuguese | |
Prosas/Contos | A Carta | 3 | 1.158 | 04/22/2008 - 22:01 | Portuguese | |
Prosas/Contos | In mea limia | 1 | 1.265 | 04/19/2008 - 12:01 | Portuguese | |
Poesia/Meditation | Sina... | 2 | 1.266 | 04/18/2008 - 22:49 | Portuguese | |
Prosas/Contos | Iniciação | 2 | 1.369 | 04/14/2008 - 18:03 | Portuguese | |
Prosas/Contos | Mare Nostrum | 2 | 1.077 | 04/12/2008 - 23:26 | Portuguese | |
Prosas/Contos | SantAna Vitae Maestra | 1 | 885 | 03/31/2008 - 22:30 | Portuguese | |
Prosas/Contos | O Circo da Vaidades Perdidas | 2 | 1.266 | 03/31/2008 - 00:05 | Portuguese | |
Prosas/Contos | Santos e Mártires | 2 | 889 | 03/29/2008 - 15:46 | Portuguese | |
Prosas/Fábula | Epifania | 2 | 1.678 | 03/28/2008 - 23:30 | Portuguese | |
Poesia/Sadness | Desfiar o Castigo | 1 | 1.104 | 03/28/2008 - 22:37 | Portuguese | |
Prosas/Others | Saudade | 2 | 1.311 | 03/28/2008 - 01:16 | Portuguese | |
Prosas/Contos | Os Lugares do Nunca | 2 | 1.239 | 03/26/2008 - 22:39 | Portuguese | |
Poesia/Love | Predilecta | 1 | 823 | 03/26/2008 - 01:53 | Portuguese | |
Prosas/Contos | Afortunados os pobres de espírito | 2 | 1.652 | 03/22/2008 - 16:03 | Portuguese | |
Poesia/Intervention | Aquele que... | 1 | 1.310 | 03/21/2008 - 15:45 | Portuguese | |
Prosas/Contos | O Meu Jardim Presépio | 1 | 1.162 | 03/19/2008 - 20:56 | Portuguese | |
Poesia/Disillusion | Transvaze para a fonte do ser | 2 | 1.578 | 03/19/2008 - 20:12 | Portuguese |
Comments
Re: A Noite do Homem
Texto bem escrito, bem enquadrado no tema!
:-)
Re: A Noite do Homem
Uma espécie de parábola com laivos góticos em torno de alguns aspectos da condição humana...muito além do atingível.
Beijo