QUATRO NOITES COM ANNA

Um filme de pouquíssimas palavras, se este argumento tiver quatro páginas de diálogos, ou melhor, de falas, é o muito. Impressionante também por isso. Estamos em boas mãos, estamos sempre com um interesse para lá do que estamos a ver. Não há palavra, mas há som, claro, e, neste filme, é o movimento constante de um corpo que fala: é o corpo que fala, o corpo do actor Artur Steranko, num trabalho como vimos poucos.
E onde estamos? Estamos na Polónia, mas não sabemos bem onde. Uma aldeia, com as suas casas em ruínas e as suas casas mais novas, uma vila, uma pequena cidade? Podia ser, por exemplo, uma aldeia portuguesa no Inverno, uma aldeia do Norte ou do Centro. Mas não é, é mesmo na Polónia. Nunca nos são mostrados muitos aspectos daquele espaço. Mesmo quando estamos numa rua, estamos sempre em cima, ou com, a personagem principal deste filme. Evidentemente, é isto que é importante, esta personagem. É uma representação extraordinária!
Acompanhamos o exterior de uma personagem que vive uma vida perto do elementar: ocupação larvar, sobrevivência, obsessão, loucura e normalidade. É dessas vidas a que Michel Foucault chamou infames, vidas que estão aquém da visibilidade, vidas aquém da configuração societária, vidas que são como a casca podre das árvores. Vidas gloriosas de nulidade. É a personagem de um retardado, um homem já de meia-idade, que vive com a avó, acamada, de quem cuida. A avó incentiva-o a uma vida normal, a encontrar companheira. E ele? Ele faz o máximo por carregar a cruz, lá vai indo. Ele trabalha, por esmola, para o hospital, está encarregue da queima dos desperdícios, onde se pode incluir, por vezes, partes de corpos. É o que ele faz, e mesmo assim, por caridade.
Mas, além de cuidar da avó, dissolvendo os comprimidos em pó que lhe dá a seguir, este homem tem uma obsessão, junto do pardieiro onde vive com a sua avó, espreita as enfermeiras. O seu estranho amor de retardado tem a ver com isso.
E a avó morre. E ele arranja maneira de passar quatro noites com a enfermeira, cuidando das coisas dela, cuidando dela, enquanto ela... dorme. Não vai acabar bem, mas também não acaba mal. Acaba em resignação, que significa: contra isto não se pode fazer nada. Acaba no que não se pode dizer, acaba no que não se pode compreender, acaba no não-dito que tanta vida transporta consigo.

Há um sabor de fel na resignação, uma justiça que é desumana, a do tempo e a da não coincidência de tudo.

Submited by

Tuesday, February 23, 2010 - 19:21

Críticas :

No votes yet

Henrique

Henrique's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 10 years 21 weeks ago
Joined: 03/07/2008
Posts:
Points: 34815

Add comment

Login to post comments

other contents of Henrique

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Thoughts DICÇÃO TRUNCADA … 1 2.369 06/04/2012 - 21:14 Portuguese
Poesia/Disillusion IMPULSO ONDE OS LÁBIOS NADA ENCONTRAM … 1 4.544 06/03/2012 - 08:33 Portuguese
Poesia/Thoughts INFINITO PARALELO … 0 5.222 05/31/2012 - 00:26 Portuguese
Poesia/Passion VAMOS SER LOUCOS … 0 3.311 05/28/2012 - 20:10 Portuguese
Poesia/Meditation PELA PELE DA MINHA PESSOALIDADE … 0 870 05/28/2012 - 02:20 Portuguese
Videos/Music Nightwish - Sacrament of Wilderness 0 5.635 05/26/2012 - 02:08 Portuguese
Poesia/Disillusion GRITO QUE FLAMA A BOCA … 0 1.240 05/26/2012 - 01:50 Portuguese
Poesia/Love CRESCER EM TI 4 2.735 05/25/2012 - 02:38 Portuguese
Poesia/Passion EM TI ESCUTO O MEU SORRIR 3 1.940 05/25/2012 - 02:33 Portuguese
Poesia/Sadness VERTIGEM INSPIRADA DE MORTE 5 3.375 05/25/2012 - 02:30 Portuguese
Poesia/Sadness INSPIRO-ME DE FRIO 4 4.744 05/25/2012 - 02:22 Portuguese
Poesia/Disillusion SEM SOMBRA NEM SOL 3 2.037 05/25/2012 - 02:21 Portuguese
Prosas/Thoughts ISENTO DE TENTAÇÕES 2 5.754 05/25/2012 - 02:07 Portuguese
Poesia/Sadness RECHEIO INCOMPLETO 7 4.332 05/25/2012 - 01:52 Portuguese
Poesia/Erotic SOU PECADO 5 1.648 05/25/2012 - 01:49 Portuguese
Poesia/Aphorism PRECISAR É PERIGOSO ... 1 2.163 05/25/2012 - 01:34 Portuguese
Poesia/Thoughts MIOLO ABSINTO … 2 2.489 05/24/2012 - 21:19 Portuguese
Prosas/Thoughts IMPERFEITO 2 6.638 05/24/2012 - 19:52 Portuguese
Poesia/Disillusion ENTRE AMAR E MORRER VENHA O DIABO E ESCOLHA 6 4.172 05/24/2012 - 19:50 Portuguese
Poesia/Passion ENCONTRO DOS NOSSOS COLOS 4 2.450 05/24/2012 - 19:49 Portuguese
Poesia/Erotic ORGASMO INFINITO 5 6.296 05/24/2012 - 16:27 Portuguese
Prosas/Thoughts DURAÇÃO DOS DIAS 2 6.799 05/24/2012 - 16:24 Portuguese
Poesia/Meditation SOMBRAS DO EGO 6 2.711 05/24/2012 - 16:23 Portuguese
Poesia/Sadness IGNÓBIL DOS SENTIMENTOS 3 1.240 05/24/2012 - 16:22 Portuguese
Poesia/Sadness SOBRA DA DOR QUE DEIXASTE 4 2.100 05/24/2012 - 16:21 Portuguese