SONHO

Sonho com o dia
em que te libertas do livro dorido
que tiras a máscara
que há muito deixou de fazer sentido.

Sonho com estrelas amarradas por cordéis
papagaio de luz que assinala
uma justiça infantil
de vista vendada.

Sonho com o dia em que as palavras te chegam
e as saboreias entre colheradas
e de peito aberto te dás
como o corpo se dá as balas.

Sonho com o nosso livro
desfolhado por uma morte certa
sentada numa cadeira
a entrada de uma porta aberta.

Sonho com o homem feito Deus
que abraça a cidade adormecida
e uma natureza que é mãe
de verde musgo se mostra vestida.

Sonho com o teu dedo apontador
virado para outra direcção
que segues com corpo despido
sensual de vestido na mão.

Sonho com a caneta que é arma
pronta a disparar verbos que te fazem sonhar
num dia final em que o tempo
não lhe resta outro remédio que parar.

Sonho com a rua cinzenta
que em Março se tornou aflição
em corpo suspenso por ideias
de palavras sem razão.

Acordo numa floresta sombria
onde raios de sol teimam em romper
e o abismo forma-se em tentação
o passo em frente depende do meu querer.

Invento um trapézio entre dois dedos
unidos na mesma mão
e sonho com nossos corpos unidos
num amo-te sem senão.

E a morte vai desfolhando o livro
com páginas de linhas vazias
e a caneta teima em não escrever
o fim dos meus dias.

Sonho de novo com estrelas
presas por cordéis de setim
numa esperança vendida ao desbarato
que um dia te juntes a mim.