Notas de um velho nojento

O Trashumante (na primeira pessoa)

Notas de um velho nojento

(parte um)

Houve ao longo da minha porca existência alguns curtos e pouco prósperos momentos de prazer realmente genuíno e em que pude considerar-me lúcido o suficiente para poder auto ajuizar-me ou gabar-me dos meus actos. Recordado e ao vivo, para alguns será condenatório, como estas lembranças de agora mesmo e embora correndo risco de ainda piorar o enxoval, a sordidez e a êxtase do nojo que sinto de mim mesmo como numa mistura agridoce de orgulho miserável, pobre e sem preconceito.
Considero estas memórias cujas antes de mais como um mau hino, um hiato libertador, uma declaração ciente consciente de uma falta de higiene moral, sem cerimonial nem usurpada indemnização de todas as minhas ilícitas, ordinárias e libidinosas ações, não lhes podendo chamar de feitos ou proezas que não escondo, não posso, façanhas são façanhas, não têm nem possuem tão belas ou sujas e desonestas qualidades quanto as que eu a mim próprio me atribuo e me encantam, enojam ou honram apenas e mesmo que só pronunciadas com alguma glória por uma má e reles escrita quanto esta sem estética, harmonia ou beleza, direi que apenas se afigura como da mais fina e refinada flor do esterco, da má reputação ou do pântano lobregue, do logro em que toda esta sórdida, baixa existência se tornou, afinal até os extremos se tocam, indeléveis.
As vielas toscas e sórdidas eram um “habitat” providencial, libidinoso e era nelas que me sentia consumado e em casa, chafurdando na merda, na miséria mais infecta, rastejante. Sentia-me talvez um pouco menor ou ainda mais abjecto se é que sentia ainda algo superlativo no corpo, sob o ralo cabelo, quando saía aos tropeções ou era despejado das imundas tabernas aos pontapés quando se acabava o pouco que tinha para gastar em álcool ou em veneno, sabia lá eu o que era aquela surrapa que destilava pelos rins e que impregnava a pele de cheiro a mijo e a aguardente bera ou falsa numa mistura cacofónica.
Naquela noite fria de Dezembro, lembro-me perfeitamente como se fosse ontem, uma jovem talvez por inexperiência profissional levantou-me levemente do chão com especial carinho ou compaixão, lavou-me o rosto com a ponta do vestido vermelho e olhou nos meus olhos de uma forma tão angelical que me esqueci ou talvez quisesse era mesmo apagar o seu rosto feliz das minhas memórias, quem sabe ela tivesse por momentos esquecido da imundice e dos maus odores a nós próprios e que nos rodeavam, alguns mesmo vindo das rameiras e dos chulos que, como uma fauna nauseabunda, indistinta e vegetal, quase que obrigando quem por ali se aventurasse aquelas horas da madrugada, ao sexo de todas as maneiras, formas e feitios que a famigerada mente humana pode elaborar ou inventar, retorcer.
Perverso por instinto, não pensei uma nem duas vezes, apesar de cambalear tentando endireitar-me nos fracos e alvos braços dela e sem ter o mínimo de decência, pudor ou alguma gota de respeito por algum ou qualquer ser humano, empurrei-a grosseiramente contra a parede grafitada do casario, tentei não sentir dó nem piedade no vocabulário vernáculo, nos palavrões mais velhacos que conhecia e arremessei grotescamente, que ejaculei pelo meio dos dentes em falta e de outros mais que podres. Não sei nem saberei jamais o que é ter dó ou pena por coisa alguma ou por alguém, sentia sim desprezo por tudo e todos e inclusive por mim.
Como quem dobra um submisso animal por gozo, curvei-a pelas coxas, segurei-a pelas axilas e à minha territorial vontade, agarrando-a submetendo-a pelos cabelos mal pintados e encardidos até ao mais baixo que se pode levar contra a seu desejo alguém, usei-a até ser apenas papel mata borrão e mais uma puta sodomizada à traição, de quarteirão barato igual a tantas outras, como era, pensava eu de facto e após o imposto acto não remunerado e criminoso.
Sentia-me novamente tão real quanto repulsivo, abjecto, vasculhando nos bojos das calças sujas, deslavadas do sangue quente da boca da matrona na braguilha, manchado a sémen; procurava pela chave do quarto que se situava mesmo ao fundo dos fundos da rua, numa cave putrefacta, sem janelas e sem limpeza, tão imunda quanto a real realidade dos sonhos de quem realmente não sonha ou nada sente.

O Trashumante (Março 2023)

https://img.wook.pt/images/notas-de-um-velho-nojento-charles-bukowski/MXwyMzI5ODAzMnwxOTI0MTI0M3wxNTY1OTc0Mjk5MDAw/500x

Submited by

Friday, November 24, 2023 - 10:33

Ministério da Poesia :

Your rating: None Average: 5 (1 vote)

Joel

Joel's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 8 weeks 6 days ago
Joined: 12/20/2009
Posts:
Points: 42284

Comments

Joel's picture

Sentia-me novamente tão real

Sentia-me novamente tão real quanto repulsivo, abjecto, vasculhando nos bojos das calças sujas, deslavadas do sangue quente

Joel's picture

Sentia-me novamente tão real

Sentia-me novamente tão real quanto repulsivo, abjecto, vasculhando nos bojos das calças sujas, deslavadas do sangue quente

Joel's picture

Sentia-me novamente tão real

Sentia-me novamente tão real quanto repulsivo, abjecto, vasculhando nos bojos das calças sujas, deslavadas do sangue quente

Joel's picture

Sentia-me novamente tão real

Sentia-me novamente tão real quanto repulsivo, abjecto, vasculhando nos bojos das calças sujas, deslavadas do sangue quente

Joel's picture

Sentia-me novamente tão real

Sentia-me novamente tão real quanto repulsivo, abjecto, vasculhando nos bojos das calças sujas, deslavadas do sangue quente

Joel's picture

Sentia-me novamente tão real

Sentia-me novamente tão real quanto repulsivo, abjecto, vasculhando nos bojos das calças sujas, deslavadas do sangue quente

Joel's picture

Sentia-me novamente tão real

Sentia-me novamente tão real quanto repulsivo, abjecto, vasculhando nos bojos das calças sujas, deslavadas do sangue quente

Joel's picture

Sentia-me novamente tão real

Sentia-me novamente tão real quanto repulsivo, abjecto, vasculhando nos bojos das calças sujas, deslavadas do sangue quente

Joel's picture

Sentia-me novamente tão real

Sentia-me novamente tão real quanto repulsivo, abjecto, vasculhando nos bojos das calças sujas, deslavadas do sangue quente

Add comment

Login to post comments

other contents of Joel

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/General Feliz como poucos … 3 4.695 03/24/2022 - 13:15 Portuguese
Poesia/General Nada, fora o novo ... 17 3.803 03/19/2022 - 21:01 Portuguese
Poesia/General A tenaz negação do eu, 8 4.396 03/19/2022 - 20:58 Portuguese
Poesia/General Nunca tive facilidade de 29 30.831 03/11/2022 - 18:20 Portuguese
Poesia/General Tudo em mim, 13 11.449 02/25/2022 - 18:40 Portuguese
Poesia/General E eu deixei meus olhos 12 4.064 02/25/2022 - 18:40 Portuguese
Poesia/General Meu instinto é dado pelos dedos mindinhos 22 7.077 02/25/2022 - 18:39 Portuguese
Ministério da Poesia/General Sem nada … 17 5.235 02/19/2022 - 16:18 Portuguese
Poesia/General Até que mais seja 33 6.406 02/17/2022 - 11:28 Portuguese
Poesia/General Send'a própria imagem minha, Continuo'a ser eu ess’outro … 18 11.576 01/21/2022 - 19:07 Portuguese
Poesia/General Perfeitos no amor e no pranto … 46 5.547 01/20/2022 - 23:04 Portuguese
Ministério da Poesia/General O facto de respirar … 43 9.565 01/19/2022 - 21:36 Portuguese
Poesia/General Não me substituam a realidade 36 5.387 01/15/2022 - 10:31 Portuguese
Ministério da Poesia/General Sou tudo quanto dou e devo ... 18 6.083 01/04/2022 - 19:16 Portuguese
Poesia/General Cada um de todos nós é todo'mundo, 31 10.641 12/11/2021 - 21:10 Portuguese
Poesia/General Sou minha própria imagem, 2 5.866 07/01/2021 - 12:50 Portuguese
Poesia/General Há um vão à minha espera 2 4.483 07/01/2021 - 12:50 Portuguese
Poesia/General leve 4 7.363 06/28/2021 - 15:39 Portuguese
Poesia/General Deus Ex-Machina, “Anima Vili” ... 1 7.372 06/24/2021 - 11:38 Portuguese
Poesia/General Da significação aos sonhos ... 1 5.135 06/22/2021 - 10:01 Portuguese
Ministério da Poesia/General Sonho sem fim, nem fundo ... 1 4.450 06/21/2021 - 16:27 Portuguese
Ministério da Poesia/General Absurdo e Sem-Fim… 1 5.001 06/21/2021 - 16:26 Portuguese
Ministério da Poesia/General A Rua ao meu lado ou O Valor do riso... 1 5.936 06/21/2021 - 16:25 Portuguese
Ministério da Poesia/General Rua dos Douradores 30 ... 1 8.746 06/21/2021 - 16:25 Portuguese
Ministério da Poesia/General Excerto “do que era certo” 1 9.035 06/21/2021 - 16:25 Portuguese