…E tanto que tinha para te dizer…

Estimado primo, hoje está um dia de luz pálida. Um sol frio que irradia trémulo por entre nuvens pesadas e dispersas. Parecem zangadas entre si. A chuva teima em querer juntar-se às lágrimas. Umas e outras vão resistindo: a pluviosidade sustida pelo vento rasteiro, o pranto amarrado na memória da tua alegria genuína. E o frio… o frio não o sinto e não o reporto.
Estimado primo, este é o dia primo em que a humanidade está mais pobre, em que a família está mais parca, em que eu, particularmente, me sinto estúpido e incapaz. Partiste e eu nem tive tempo de te dar um abraço de despedida.
E eu que tanto tinha para te dizer…
Inflamo-me contra dEUS! Ainda não entendi qual o sentido de oportunidade para te levar do nosso convívio. Quando será que a morte compra uns óculos?! Anda assim, por aí, a ceifar sem pejo, sem orientação, cega e faminta, levando os nossos melhores! O que me ocorre é que, talvez estejas a fazer falta noutro sítio. Mas, deixas tanta falta por aqui, também!
E eu que tanto tinha para te dizer…
É um privilégio chamar-te “primo”. Um orgulho! Nunca foste mais do que um incógnito para os meandros que definem as categorias dos destacáveis, dos notáveis. Na tua candura, contudo, colocaste a o ânimo do Ser-se Humano na ribalta, no esplendor máximo, para quem o quisesse partilhar, para quem o quisesse aprender. Servistes-me de exemplo, sem nunca conseguir, porém, ser um bom discípulo da tua natural mestria.
E tanto que ainda tinha a aprender contigo…
Felizes os que te irão conhecer.
Para onde te levaram, não necessitarás de formação especial para envergares a indumentária de anjo. Certamente, irás como (re)formador das qualidades desses seres excelsos.
Como cá, não lhes darás trabalhos, antes dedicação e esforço não reclamado;
Como cá, não lhes farás frente ou desafio, antes préstimo e concórdia;
Como cá não lhes darás azedume e rancor, antes um sorriso puro e uma humildade sem par.
Tanto que poderão aprender contigo…
Primo, amigo, agora que seguiste por outra dimensão, não te esqueças de nós, tal como não nos esqueceremos de ti.
Ainda é cedo, mas quando chegar o dia, conto retomar os ensinamentos contigo. Entretanto, vou fazendo os possíveis que a memória e a saudade permitirem.
Por lá e por cá, continuas bem vivo!
Um abraço sem fronteiras

Sit Tibi Terra Levis
Requesquiat in pace

Ao meu primo João…

Jorge Pópulo
XXIX : X : MMVIII

Submited by

Wednesday, October 29, 2008 - 17:07

Prosas :

No votes yet

Andarilhus

Andarilhus's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 14 years 36 weeks ago
Joined: 03/07/2008
Posts:
Points: 868

Comments

Anonymous's picture

Re: …E tanto que tinha para te dizer…

Sei
da dor sem forma
no espelho, na cama

na fotografia tão celeste.
E como dói!
A solidão, a saudade, a chama...

Numa leitura primorosa, contemplo ajoelhada no mesmo altar que tu, esta amargura silente e inolvidável.

Abraços,

Bárbara.

Andarilhus's picture

Re: …E tanto que tinha para te dizer…

Não é meu costume comentar comentários...
Neste caso é importante que o faça...

Obrigado a todos pela vossa atenção e solidariedade...
Saudação fraterna

Andarilhus

zizo's picture

Re: …E tanto que tinha para te dizer…

As pessoas queridas quando partem fazem sempre muita falta por cá.
Mas é assim que o ciclo da vida se completa.
Ele terá um cantinho bem quentinho algures no céu e isso é um aconchego para a alma dos que ficam por cá.

Abraço

MariaSousa's picture

Re: …E tanto que tinha para te dizer…

Sei bem o que é escrever uma carta para quem já não a vai receber nas mãos.

Partem os Melhores. Ficamos nós :-(

Bjs

Anonymous's picture

Re: …E tanto que tinha para te dizer…

Abre teus braços para acolheres meu abraço.

e já agora um beijo

Add comment

Login to post comments

other contents of Andarilhus

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Sadness Remos de Vida por Mar Inóspito 3 855 07/29/2010 - 00:39 Portuguese
Poesia/Meditation Derrubar os Nossos Muros 1 831 07/29/2010 - 00:38 Portuguese
Poesia/Thoughts Aqueles Que Instigam os Nossos Demónios Cativos 1 1.043 07/16/2010 - 15:58 Portuguese
Poesia/Intervention O Drama sem Argumento 3 1.021 05/29/2010 - 15:31 Portuguese
Poesia/Sadness O Voar Rastejante 1 739 04/25/2010 - 13:09 Portuguese
Poesia/Gothic O Uivo da Lua (Um texto comum de MariaTreva e Andarilhus) 7 1.411 03/04/2010 - 16:06 Portuguese
Poesia/Love A Obra do Amor 4 1.026 03/03/2010 - 02:55 Portuguese
Poesia/Gothic Protege-me com tuas lágrimas 5 732 03/03/2010 - 02:51 Portuguese
Poesia/Love Outra vez... 6 976 03/03/2010 - 02:06 Portuguese
Poesia/Aphorism O Tesouro 4 819 03/02/2010 - 17:19 Portuguese
Poesia/Meditation Um Natal Aqui Tão Perto 4 880 03/02/2010 - 03:04 Portuguese
Poesia/Dedicated Vestida de Mar (ia) 4 892 03/01/2010 - 20:18 Portuguese
Poesia/Meditation Fado Vadio 5 880 03/01/2010 - 15:29 Portuguese
Poesia/General Farei de ti um concorrente do Sol 7 1.048 02/28/2010 - 19:45 Portuguese
Poesia/Meditation Um bom ponto de partida... 7 674 02/28/2010 - 19:24 Portuguese
Poesia/Meditation O Fio Ténue da Marioneta 5 892 02/28/2010 - 13:55 Portuguese
Poesia/Disillusion O Canto Escuro 7 983 02/28/2010 - 12:39 Portuguese
Poesia/Aphorism Lições de Vida, Lições de Amor 5 1.003 02/28/2010 - 01:38 Portuguese
Poesia/Aphorism Folha de Outono 5 963 02/28/2010 - 01:17 Portuguese
Poesia/Passion Guarda-me no teu beijo 8 1.114 02/28/2010 - 00:48 Portuguese
Poesia/Sadness Coroa de Espinhos 3 947 02/27/2010 - 21:07 Portuguese
Poesia/Fantasy A Pura Dimensão 3 990 02/27/2010 - 20:56 Portuguese
Poesia/General Das Certezas (tomo IV) 2 1.141 02/27/2010 - 15:03 Portuguese
Poesia/Passion Saída 3 964 02/26/2010 - 17:26 Portuguese
Poesia/Love Obra-prima 3 822 02/26/2010 - 17:13 Portuguese