Por Ti Seguirei... (5º episódio)


Saído do torpor, o vacceu respondeu então a Alépio: - “No meu povo há facções que simplesmente odeiam Aníbal e para quem os romanos – se destruírem os púnicos – são um mal menor. O que lhes interessa é mesmo acabar com um invasor, mesmo que para isso tenham de aliar-se a outro potencial invasor. Pensam que tratarão deste agora e mais tarde do outro. Há também aqueles que se aproximam da vossa causa e que suspeitam que os púnicos, comparados com os romanos, são até bem toleráveis. É por isso - por não haver consenso – que o caminho mais sensato encontrado na reunião do conselho dos chefes das tribos foi eleger um só comandante que respondesse por todos e mantivesse para já a neutralidade. Eu, de minha parte…”.
– “E não sabes tu da ignomínia dos romanos quando, conjuntamente com os seus aliados dos montes Pirenaicos emboscaram sem pudor ou honra as tropas desprevenidas de Aníbal?!” Atalhou abruptamente Rubínia, perdendo a sua postura de simples ouvinte e de recato.
Levantou-se um silêncio frio. Concentraram-se as atenções na agitada Rubínia. Os instrumentos calaram-se num ápice, mas retomaram quase imediatamente as melodias. Não era de todo normal que uma mulher dirigisse a palavra a um líder estranho e muito menos que o confrontasse naquele tom. Na ordem social celta as mulheres sempre tiveram um papel de paridade com os homens. Todavia, não lhes estava atribuído nem lhes era admitido a discussão da estratégia militar e a política, especialmente se fosse para esgrimir opiniões com as cúpulas do poder e decisão.
Alépio atravessou-se de pronto na conversa e tentou desanuviar a pressão: - “Calma Rubínia!” E virando-se para o chefe vacceu: - “Gurri, sê compassivo com as palavras de Rubínia. Tongídeo, seu marido e valoroso guerreiro, é um dos nossos que sofreu a cobardia romana com a captura. É cativo dos nossos inimigos, tanto quanto sabemos. E por isso Rubínia segue connosco, em busca da sorte do esposo e na esperança do seu resgate. Só uma mulher de grande coragem e persistência é que se empenhava em tamanha empreitada. Em boa verdade, Tongídeo é digno de ser invejado; é um protegido dos deuses por ter quem lhe queira tão bem”.
Gurri, embora já calejado pelas visitas da surpresa e do inesperado, apelou ao auto-domínio, tanto mais que era ali convidado, e ponderadas as circunstâncias, decidiu excepcionalmente responder a quem o interpelava, considerando também as palavras do seu anfitrião. Encarou aquela mulher invulgar - um pouco imprudente, mas intrépida – e disse-lhe: - “Tu, Rubínia de nome, tens a força do mais decidido guerreiro. Cumprimento-te pela tua dedicação a Tongídeo e reverencio a tua manifestação de querer. Conhecemos bem o episódio que relatas e eu não tenho qualquer pejo em reconhecer a infâmia dos atacantes escondidos. A honra de um guerreiro é demonstrada às claras, sem ardis ou premeditações infames. Porém, nós nada temos a conjugar com estes acontecimentos e queremos mesmo ficar distanciados destas lutas que não são nossas. Não somos causa e também não seremos solução”.
- “Acredito nas vossas intenções, sinceramente. Acredito sobretudo em ti, Gurri. Tenho-te escutado e julgo que és um homem de carácter e palavra”. Mais uma vez, Rubínia atraía as atenções.
– “Perdoa-me a irreverência. Sinto que ao fim de alguns anos à espera do regresso do meu marido e após conhecer o seu destino, só me resta procurá-lo, ir ao seu encontro. Ele também o faria por mim. As distâncias que percorri e terei de percorrer serão sempre pequenas se continuar a acreditar que voltarei a estar com ele. Tudo o que fizer para alcançar o meu objectivo, é pouco”. Fez uma pausa para controlar a emoção e manter o discurso em tom sereno.
Por esta altura apenas o som alegre da iluminada fogueira expressava algum respirar. Alépio, rendido, deixou que o incidente continuasse, ele também já curioso com o desfecho de tudo aquilo. Como diriam os malandros dos romanos: “Alea jacta est!”.
E Rubínia continuou: - “Assim como acredito na vossa sinceridade, também acredito que sabeis bem mais deste caso. Os vacceus são conhecidos pela sua omnipresença e mesmo hegemonia no nordeste ibérico. Nada vos escapa e nada acontece sem que tenhais conhecimento, prévio ou posterior. Sou filha de comerciantes e as notícias sobre vós sempre foram abundantes. Os vossos primos do nascente, os Arévacos, são uma pálida imagem do vosso poderio”.
As insinuações eram contundentes e o desafio evidente, granjeando olhares incrédulos de todos e os arreganhos maxilares dos vacceus, que ora olhavam para a mulher imoderada, ora olhavam para o seu chefe na perspectiva de algum sinal. Com o ambiente em crescendo de ansiedade e na iminência de vexar os convidados, Rubínia prosseguiu, mesmo reparando na confusão emocional de Alépio, efervescente numa fusão de reprovação e de admiração. Estava disposta a tudo e sabia onde queria chegar.
-“Gurri, mesmo correndo o risco de enfurecer a ti e aos teus e desrespeitar o nosso bom líder Alépio, envergonhando-o perante vós, peço-te, pelas divindades que mais estimas, que nos dês conhecimento de tudo o que sabes sobre os romanos e sobre o destino que deram aos prisioneiros da cilada pirenaica!” Baixou a cabeça e quando a ergueu trazia um olhar que assustou até Zímio. Este, apesar de servo, tentou aconselhá-la com um quase imperceptível e negativo aceno da cabeça.
Todavia, a determinação acicatou a ousadia de Rubínia. Sem o menor tremor foi dura e directa: - “Disseste que eu tenho a força do mais decidido guerreiro. Pois bem, por Trebaruna - deusa por mim muito venerada -, estou disposta a desafiar-te para um duelo até à sujeição, segundo a tradição de ajuste de contendas pessoais comum à ordem e lei natural dos nossos povos! Se te vencer, dir-me-ás toda a verdade e juntar-te-ás a nós e à nossa causa; se triunfares, farás comigo o que entenderes …”
Desta vez ficou a impressão que até a fogueira respeitou o silêncio avassalador, senhor da suave colina que servia de patamar a jantar tão inusitado e de balcão central para as centenas de fogueiras do acampamento, semeadas pela planície abaixo.

Continuação de:
http://galgacourelas.blogs.sapo.pt/35645.html

(Continua…)

Andarilhus
XIX : I : MMIX

Submited by

Tuesday, January 20, 2009 - 10:54

Prosas :

No votes yet

Andarilhus

Andarilhus's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 14 years 13 weeks ago
Joined: 03/07/2008
Posts:
Points: 868

Add comment

Login to post comments

other contents of Andarilhus

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Sadness Remos de Vida por Mar Inóspito 3 774 07/29/2010 - 01:39 Portuguese
Poesia/Meditation Derrubar os Nossos Muros 1 741 07/29/2010 - 01:38 Portuguese
Poesia/Thoughts Aqueles Que Instigam os Nossos Demónios Cativos 1 931 07/16/2010 - 16:58 Portuguese
Poesia/Intervention O Drama sem Argumento 3 990 05/29/2010 - 16:31 Portuguese
Poesia/Sadness O Voar Rastejante 1 679 04/25/2010 - 14:09 Portuguese
Poesia/Gothic O Uivo da Lua (Um texto comum de MariaTreva e Andarilhus) 7 1.304 03/04/2010 - 17:06 Portuguese
Poesia/Love A Obra do Amor 4 939 03/03/2010 - 03:55 Portuguese
Poesia/Gothic Protege-me com tuas lágrimas 5 661 03/03/2010 - 03:51 Portuguese
Poesia/Love Outra vez... 6 876 03/03/2010 - 03:06 Portuguese
Poesia/Aphorism O Tesouro 4 651 03/02/2010 - 18:19 Portuguese
Poesia/Meditation Um Natal Aqui Tão Perto 4 823 03/02/2010 - 04:04 Portuguese
Poesia/Dedicated Vestida de Mar (ia) 4 837 03/01/2010 - 21:18 Portuguese
Poesia/Meditation Fado Vadio 5 750 03/01/2010 - 16:29 Portuguese
Poesia/General Farei de ti um concorrente do Sol 7 887 02/28/2010 - 20:45 Portuguese
Poesia/Meditation Um bom ponto de partida... 7 641 02/28/2010 - 20:24 Portuguese
Poesia/Meditation O Fio Ténue da Marioneta 5 809 02/28/2010 - 14:55 Portuguese
Poesia/Disillusion O Canto Escuro 7 889 02/28/2010 - 13:39 Portuguese
Poesia/Aphorism Lições de Vida, Lições de Amor 5 858 02/28/2010 - 02:38 Portuguese
Poesia/Aphorism Folha de Outono 5 854 02/28/2010 - 02:17 Portuguese
Poesia/Passion Guarda-me no teu beijo 8 1.034 02/28/2010 - 01:48 Portuguese
Poesia/Sadness Coroa de Espinhos 3 840 02/27/2010 - 22:07 Portuguese
Poesia/Fantasy A Pura Dimensão 3 918 02/27/2010 - 21:56 Portuguese
Poesia/General Das Certezas (tomo IV) 2 1.089 02/27/2010 - 16:03 Portuguese
Poesia/Passion Saída 3 862 02/26/2010 - 18:26 Portuguese
Poesia/Love Obra-prima 3 760 02/26/2010 - 18:13 Portuguese