Deixa morrer

Em certas manhãs de Abril, eu quero tudo.

Quando o céu desaba, entre os meus dedos, no meu bolso, e os rostos com que me cruzo me gritam que o fim do mundo é hoje ao fim da tarde, eu quero tudo o que eu quero, tudo o que tu queres e tudo o que eles desejam à distância de uma falha no meu pulso.

Bato a porta com a fúria de quem fui há anos e saúdo o existir com a alegria de hoje, que é minha e só minha; reclamo-a para mim e escondo-a atrás das costas de mãos apertadas e faces ardentes, coração pequenino e suspiros intermitentes, para que não saibas que sou feliz nos dias de chuva.

Caminho sobre as poças escuras e amo a tempestade que me desgrenha os cabelos como te amei nos dias que pintámos de nuvens incandescentes. Sorrio ao estranho que me aborda no passeio e me estende publicidade que não leio nunca: também ele arde sob a chuva que não nos molha: a nós, os escolhidos.

Fomos os escolhidos para dançar entre os que caminham entre o nada e o quase-nada, tremendo sob o doce da água que os gela por dentro, secando as pedras da calçada com ternuras sopradas no restolhar da eternidade que nos abraça a cada passo que damos, decididos. Nessas manhãs sou uma só com o mendigo que me oferece a mão e me abençoa com um obrigado salgado. Sento-me com ele no cartão e mordo o mesmo naco de pão envolto em jornal, desfeito pela água que o lava e me aconchega o peito. E aqueço-o com beijos que lhe dou com os meus olhos e guardo o sorriso que me retribui com a boca, junto ao amor que ainda tenho por ti.

Gosto de ti assim: com os olhos, com obrigados temperados pela distância entre ti e o que quero nos manhãs cinzentas de Primavera. Quero-te assim, com intervalos nos dias em que o sol brilha e os braços me pendem ao longo do corpo, sem alegrias para esconder. E amo-te assim, quando aperto as estrelas entre o polegar e o indicador e imploro aos deuses que me concedam mais um dia de chuva sem te ver.

E quando esse dia chega, estendo-te a mão e beijo-te um pedido:
Deixa-me ser sozinha com o tumulto da tua ausência.
Apenas porque sim.
Apenas porque não pode ser de outra forma.

Apenas porque te peço:

“Deixa o nosso amor morrer…”

***

Yours sincerely,
Supertramp.

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Monday, December 8, 2008 - 14:35

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