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Brilho

"Assim como lavamos o corpo devíamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa."
Fernando Pessoa

Dezasseis horas e o sol aperta e sopra secando a garganta, enquanto fios de suor escorrem pelas costas do vestido. A sede é de tal maneira que para a saciar entro no café mais próximo, ignorando os sinais de proibição há muito impostos. É um risco entrar ali, mas na verdade naquele lugar específico apenas te encontrei uma vez e isso foi literalmente no século passado. Diga-se de passagem que desde que ali te vi, nunca mais lá entrei...
«Cresce rapariga!» - Penso e entro.
A pastelaria está praticamente vazia, o que me faz suspirar de alívio. Contudo, o curto trajecto até ao balcão incomoda e irrita. Está tudo igual, desde a decoração à disposição das mesas. Talvez me sentisse melhor se não restasse absolutamente nada do que ficou gravado na memória.
_ Um café e uma água fresca, por favor! - Peço ao empregado, enquanto olho em volta como se não soubesse o lugar onde me iria sentar. Na verdade hesitei entre sentar-me na tua mesa ou ficar de frente para ela.
«Cresce rapariga!» - Penso e sento-me num lugar ao acaso, forçando o olhar a fixar-se num qualquer outro ponto. Como se precisasse olhar...
Poucos minutos depois, menos ansiosa e de sede saciada, passeio os dedos curiosos pelo jornal diário. A pressa de sair foi-se diluindo à medida que a leitura substituiu as preocupações iniciais por outras mais comuns à maioria dos cidadãos: crise e insegurança na ordem do dia.
Enquanto voltava as páginas do jornal, o frenesim no café ora aumentava ora diminuía num ritmo tão constante que me permitiu abstrair destas mudanças no ambiente. Uma hora permaneci no mais absoluto silêncio e ainda me dei mais alguns minutos após o dobrar das desgraças noticiadas. Sentia-me mais corajosa, capaz de quebrar muitas outras rotinas, de viver mais a vida. Assim me sentia até que me levantei e te vi ali, onde já não pensaria voltar a encontrar-te...
Sorriste. Sorris sempre. Assim, como se a vida te desse um acesso privilegiado aos raios de sol.
«O meu deserto...» - Penso enquanto arrasto as pernas nervosas, maldizendo a hora em que lá entrei ou o simples facto de não ter pago logo a conta.
No meu caminho estás tu e o espaço é tão reduzido que te ouço respirar. Um formigueiro percorre-me todo o corpo e as imagens que me tomam de assalto fazem-me estremecer: lábios, língua, hálito, húmido, frio, calor, suave, brilho...
«O meu inferno...» - Penso enquanto me obrigo a partir com uma sede maior da que tinha horas antes. - «O teu corpo... Quero-o tanto que o meu me dói...»
Dobro a esquina, coloco os óculos escuros e fixo um objectivo no horizonte, algo que me faça andar, um lugar para onde ir. No rosto sinto a nascente transbordante, lágrimas ou desejo, qual quebrará primeiro…
Afasto-me para que os possa libertar a sós, evocando o rio das impossibilidades que existiu sempre entre nós: ele não virá, mas se viesse eu não iria com ele.
Procuro refúgio num antigo jardim, de uma casa esquecida no tempo. Pedra corrompida pelas persistentes trepadeiras, erosão silenciosa, refúgio perfeito de um tempo que volta e meia pára.
Encostada a uma parede permito-me apenas respirar, os olhos ainda estão cegos e o corpo em choque.
«Ficarei apenas o tempo suficiente para que as próprias ruas se esqueçam que passei ali…» - na verdade dou tempo para que a vida redefina os seus caminhos para que não nos cruzemos novamente.
Mas hoje interferi com o normal curso da vida e o inesperado, tantas vezes imaginado, agarrou as rédeas e aproveita o momento.
O portão chia uma vez ao abrir, outra ao fechar. Os passos arrastados marcam o pesar de quem chega. O som ecoa nos ouvidos, como um som isolado e uma frequência singular que se alinha e interfere com o pulsar do meu coração. Não esboço o menor movimento até que os meus olhos, pregados no chão, se fecham e estremecem perante o sol que irrompeu pelo jardim.
Olho-lhe nos olhos sabendo que a cegueira crescerá para além deste tempo suspenso. Uma pausa no universo permite, momentaneamente, que uma ponte, desenhada no olhar, una dois mundos. Assim, permanecemos em silêncio sentindo o pulsar, o alinhamento, a bênção de um momento propício e perfeito.
A luz crepuscular não diminui a temperatura, antes confere ao ambiente uma qualidade do irreal na qual nos sentimos tão especiais. A cor devolvida à face inunda os lábios vacilantes, tornando-os num jardim florido em tons de rosa enrubescido.
Ele sorri e ela é ri… Impossível não rir… Nunca o conseguiu!
Um passo dado, braços que se estendem, bocas que se confundem, dedos que libertam botões… É a própria liberdade que os acorrenta no corpo de um no outro. Pele sobre pele. Ouro e platina. Brilho até que a ponte se desfaça e o rio os mantenha em margens opostas.
Se eu quisesse ver-te, saberia onde...
Os caminhos que evito, as paragens que não faço são pequenos gestos que me dizem - ainda que o não queira saber - que te levo comigo. Escapei de ti, é certo, mas contigo deixei tudo o que queria viver.

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sábado, janeiro 12, 2013 - 22:20

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Ema Moura

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