Intuições
I
O dia despontou como um presságio de maldição. Um céu de prata enclausurava o alvorecer num hálito roufenho de melancolia e orvalho que castigava o ânimo das ruas ainda adormecidas. Soprava uma cálida brisa, e a folhagem serpenteava sobre a calçada como raspas de ferrugem que deterioravam o olhar.
- Estás à espera de quê? – Uma voz rude exasperava entre a luz e o torpor.
- O que aconteceu? Onde estou? – Indaguei ainda com a névoa das pálpebras entreabertas.
Tomei alguns segundos para lavar o rosto com a fosforescência do mundo. O horizonte alongava-se em vultos trémulos como labaredas de surro. Apercebi-me que tremia das pernas e que o coração batia desalmadamente rente às goelas. Vagas de pânico e gemidos lúbricos começavam a martelar-me os ouvidos sem piedade enquanto as íris descodificavam o pó e o fumo que fervia de um edifício em ruínas. A torre dos clérigos.
- O que fiz eu? – Olhava para as mãos ainda com nódoas de pólvora.
Os destroços esguedelhavam-se por dezenas de metros num panorama angustiante. O relógio da torre sobressaía dentre o mármore e o granito que jaziam no solo. Indicava 6h11m.
- Não há tempo…vamos! – Raul impelia-me drasticamente, esbracejando dentro de um velhinho BMW a hidrogénio liquefeito. A sua pintura prateada mesclava-se no firmamento.
Ainda à toa, fulminei-me para os estofos negros e rotos do automóvel. Um estridente guinchar derrapou pelos ouvidos e pelo asfalto, arrancando-nos da praça da liberdade numa velocidade caótica.
O meu cúmplice estava eufórico e uivava palavrões e saliva.
- O que fiz eu? – Insistia aterrorizado.
- O que fizeste? Rebentaste aquela porra toda! – Luís sorria-me maravilhado.
- Mas…não me lembro de nada – Olhava para o vidro traseiro onde a avenida dos aliados já se despedia – Foi o Cisco não foi? …Responde-me Raul! – Exaltei-me esmurrando o tablier com violência.
Um riso trocista denunciava a resposta que já adivinhava.
- Porquê? Como foste capaz de me fazer isto? Responde…
Ao vê-lo colocar a mão direita no bolso interior do casaco e retirar um revólver de ondas electromagnéticas que premeditava velozmente para a minha nuca, abri instintivamente a porta do passageiro e atirei-me em desespero. Senti a pele a rasgar no alcatrão e a carne a ferver aos trambolhões até embater contra a áspera murada de um casario. Espreitei aquela fúria prateada a guinar para longe da minha vista. Fiapos de sangue desbordavam-se dos joelhos e dos cotovelos, e as maçãs do rosto inflamavam-se subitamente em paletas púrpuras e violetas. Ergui-me a custo. Ao primeiro passo as pernas quebraram como se faltassem parafusos nas articulações. A dor era incomensurável. Levantei-me de novo e comecei a mancar.
Uma das sirenes que ao longe chilreava aproximava-se repentinamente. Aos tropeções dobrei uma esquina, outra e mais outra num arfar sôfrego de corpo devastado. Acalmei o passo julgando-me um pouco mais seguro. Inesperadamente, um planador da Ordem Pública gemeu agudamente e disparou no meu encalço. Arranquei novamente em correria, mas as mazelas do meu corpo espezinhado deitaram-me pelo chão. Desisti. De rosto no chão e olhos cerrados, degustei um sopro de ar quente que me afagava os contornos do corpo como se fosse a última refeição da derme em liberdade. Começou a chover timidamente. Senti o frenesim do veículo de patrulha estacionar junto de mim.
- Entra…depressa!
Balouço o rosto na sua direcção e reconheço as feições do Pedro. Agradeci aos céus. Num esforço heróico carreguei-me para dentro da viatura que se sustinha a um palmo do chão.
- És o Cisco não és? – Perguntou-me alertado.
- Agora já não… – Respondi num cicio quase inaudível.
- Do que é que te lembras? – Pedro perscrutou-me.
- Nad…
- O quê?
Desmaiei…
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Comments
Re: Intuições
:-)
João, joão........
Que delicia! é tão bom deixar levar-me pela tua escrita.........
Saborear cada frase como se não ouve-se mais nada!
Gostei muito do teu conto!
Beijo da amiga..
mm
Re: Intuições
Excelente envolvencia esta narrativa, parabéns pelo conto.
Um abraço
Melo
Re: Intuições
João,
Já o admirava na poesia, agora mais aind atambém na prosa.
Narrativa envolvente, encadeamento preciso...
Parabéns!
Bj
Re: Intuições
Olá João.
Tue tens uma escrita surpreendente a cada momento ido na leiutura
Um tema incisivo e realista num mundo onde impera a violência e a incapacidade de nos adaptarmos ao sistema, que a cada passagem, se torna mais corrosivo
Gostei
Obrigada pela participação
beijo
Matilde D'Ônix
Re: Intuições
Uau!!! Esta fantástico João, prende desde a primeira linha, q vontade q dá de ler mais!!!
E depois é a forma como descreves tudo, o teu vocabulário rico e prodigioso a construir imagens! Deixas espaço à imaginação, mas conduzes com mestria o leitor pela tua mão! Adorei mesmo, mesmo!!!
Beijinho grande em ti!
Inês